terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

camarada Neuton: uma lição de vida

Sei que, por estranho destino, fiquei fadado a ser homem memória dos ribeirinhos da vida cuja história foi subtraída pela colonização e o neocolonialismo até recentemente... Dia a dia, por necessidade e acaso, me vejo testemunha marginal do espaço amazônico em transformação acelerada face a desconformes pressões geopolíticas de Norte e Sul, sob império do deus mercado, na rica e cobiçada região equatorial de gentes pobres da América do Sul. Em Marajó -- ilha mãe da amazonidade --,tendo se calado a voz de Dalcídio Jurandir (1979) e de Giovanni Gallo (2003) em defesa da Criaturada grande das ilhas e Baixo Amazonas, levantei a bandeira encontrada ao chão da melhor maneira que posso... Quem há de nos defender, se não nós mesmos, apoiados por forças populares do maior país dos trópicos e a solidariedade do mundo democrático?

O companheiro Neuton Miranda do PCdoB foi um dos poucos dirigentes políticos deste país que, imediatamente, compreendeu a mensagem dos marajoaras. Claro, ele havia sangue caboco a lhe correr nas veias e não foi sem razão que assumiu lugar na academia do peixe frito. Cedo compreendeu que o emblemático Marajó é mais que uma famosa ilha no meio de uma geografia sonâmbula: em Cachoeira do Arari, onde estivemos juntos pela derradeira vez inclusive para visita ao Museu do Marajó; durante entrega de titúlos de autorização de uso de terras públicas pela população ribeirinha, repetiu ele que a ilha grande da boca do Amazonas é o derradeiro reduto das populações tradicionais do Pará e insistiu para que eu désse testemunho desta assertiva.

Deste modo, meu encontro com o camarada Neuton não aconteceu antes da instalação do "Grupo Interministerial de acompanhamento de ações públicas no arquipélago do Marajó" (GEI-Marajó), em 2006, dando origem ao Plano Marajó (2007-....). Mas foi um destes casos de empatia imediata e momento de convergência entre a teoria e a prática marxista de restauração da história dos povos marginalizados pela História. Sem demora, convocado pelo próprio Neuton me engajei na preparação de força-tarefa da GRPU para regularização fundiária de terras da União no arquipélago: uma ação federativa com a força do símbolo da devolução aos cabocos das várzeas de seus antepassados indígenas, lesados pela doação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), por desfeita colonial às pazes arranjadas pelo Padre Antônio Vieira (nos termos da lei de abolição do cativeiro dos índios, datada de 1655, arranjada pelo mesmo padre junto ao rei de Portugal, dom João IV). Quer dizer, 350 anos depois das pazes de Mapuá (1659) estávamos a desatar o nó colonial sob império da Constituição de 1988 e governo federal em coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Não é pouca coisa para esta gente do fim do mundo no extremo norte brasileiro!

Certamente, eu, antigo repórter da província que para sobreviver me fiz burocrata e tirei "férias" da subversão nos anos de chumbo; sabia quem era o deputado estadual Neuton Miranda. Ele porém, aparentemente, nada sabia sobre mim até 2006, durante tratativas entre as ilhas do Marajó e a Presidência da República sobre a demanda da sociedade civil marajoara, conduzida pelos bispos da diocese de Ponta de Pedras e prelazia do Marajó, contra a miséria do IDH no "paraíso ecológico". Daí surgiu o GEI e, posteriormente, o Plano Marajó com ações emergenciais de combate à malária, regularização fundiária e obras de infra-estrutura. Posteriormente, ao Plano juntou-se o programa Territórios da Cidadania - Marajó integrado ao programa estadual de integração regional.

Assim, a odisséia do caboco se concluía aparentemente. Todo bom caboco há que parecer ingênuo e artista de circo, ao mesmo tempo, para sobreviver em terra de brancos... Não foi sem razão que o baiano Jorge Amado chamou a seu camarada paraense Dalcídio Jurandir de "índio sutil" em discurso na Academia Brasileira de Letras (1972). Detalhe, Dalcídio era filho de negra e branco, mas em sendo marajoara não importa a cor da pele, quem não for "índio" está fadado a dar com os burros n'água na doce ilusão de se tornar bom "civilizado"...

O camarada Neuton vivendo na clandestinidade recebeu conselho de seu pai para praticar a lição do peixeinho quatro-olhos (Tralhoto), capaz de ver o inimigo pelo fundo do mar e por cima do ar... Antônio Vieira, há mais de três séculos e meio, havia ensinado coisa semelhante. Portanto, se em terra de cego quem tem um olho é rei, em tempos bicudos bancar o tralhoto é questão de vida ou morte.

Estas lembranças rolavam em minha cabeça quando eu caminhava pelas ruas estreitas da Cidade Velha para o último adeus a Neuton Miranda velado no salão nobre da Assembléia Legislativa do Estado do Pará, casa do povo dita palácio Cabanagem. O filme do passado projetava-se ao futuro no cenário do centro histórico de Belém, Ver O Peso ao junto à margem do Guajará; quando vi a fachada do edifício coberta de bandeiras vermelhas do PCdoB: nunca dantes o palácio mereceu tanto o título cabano, mesmo quando de cerimônia fúnebre dos companheiros Paulo Fontelles e João Batista, assassinados a mando do arcaico e demente latifúndio. Ali a morte natural, todavia inesperada, estendia o corpo do camarada pranteado e alcançava renome de uma gloriosa caminhada na vida. Era, paresque, comparável a El Cid Campeador depois de morto a infundir respeito ao inimigo da Reconquista.

Sinto ser meu dever tentar interpretar, ao mais fielmente possível, os sentimentos da gente ribeirinha donde minha família marajoara se acha metida até o pescoço desde sempre. Diante da triste notícia do súbito falecimento de nosso querido irmão, amigo e camarada Neuton, nesta hora de dor e perplexidade pela perda do grande aliado dos povos das águas, a gente quer ainda recolher do exemplo da sua vida a seiva revitalizadora da esperança de novas conquistas poíticas a favor da dignidade humana nas extremas paragens da Amazônia e da resistência contra a alienação cultural e as injustiças socioeconômicas.

Morreu o camarada Neuton Miranda Sobrinho em plena atividade, bravo servidor do Público que nunca se refugiou no conforto do gabinete nem fez do cargo motivo de ostentação. Longe de tirar vantagem para fazer carreira, ele como bom comunista estava prestes a aceitar a grave missão reclamada por seus camaradas de concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados. A fim de, em Brasilía, a cabanagem democrática e pacífica ter tribuna e articulador plenamente comprometido com o resgate da identidade das antigas populações tradicionais amazônicas perdidas e desnorteadas no cruel processo de modernização conservadora.

Ninguém melhor e mais credenciado do que o camarada Neuton, reconhecido e coroado pelo resultado feliz de um projeto de referência prática para devolução de direitos territoriais históricos usurpados. Mas sua obra política, social e administrativa através do Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária de terras da União, e tantas outras ações de militante e homem público, é uma boa semente plantada em solo fértil. As lágrimas e o suor deste povo despossuído misturado a tanto sangue derramado pela antiga exclusão, doravante mais consciente e mais unido do que nunca; há de fertilizar a planta e produzir muitos e duradouros frutos.

O Brasil da economia solidária há de fazer história no mundo pós-Crise de 2009. Nosso campeão de inclusão socioambiental na Amazônia paraense deixa um grande exemplo de gestão federativa com participação das comunidades locais. Prova concreta de que um outro mundo é possível... Será justo, portanto, que sua obra se transforme em ação permanente para o desenvolvimento socioambiental comunitário em homenagem ao nome Neuton Miranda Sobrinho. Nativo de Marabá, casado com a professora universitária Leila Mourão com quem tem uma filha, Janaína Miranda. Militante político desde 1968, atuou no movimento estudantil, foi diretor da UNE de 1971 a 1973; deputado estadual do Pará, Presidente da COHAB, Secretário Municipal de Habitação e candidato a senador em 2002 quando obteve mais de 300.000 votos; faleceu no cargo de gerente regional do Patrimônio da União no Pará.

Com ele à frente da GRPU-PA a regularização fundiária em terras da União no interior do Pará alcançou a mais de 50 mil famílias (correspondente a 150 mil pessoas diretamente beneficiadas, a regularização fundiária é na verdade o passaporte da Cidadania, primeiro passo para a melhoria do IDH). Esta fundamental ação já chegoou a 31 dos 44 municípios do Estado e mais adiantado estaria se a SPU contasse com mais recursos, cuja falta de elementos pode ser apontada pelo excessivo esforço humano da equiipe que levou, certamente, ao sacrífício da vida de seu dirigente. Na capital, com parceria do Governo estadual, este número de atendimento é somado a mais 25 mil moradias. Com a Universidade Federal do Pará a SPU irá titular mais de 15 mil imóveis, inicialmente em terrenos da própria universidade ocupados pela população sem moradia. O Projeto Orla esta levando cidades paraenses a preservar, recuperar e disciplinar o uso do litoral urbano através de gestão compartilhada entre poder público e comunidadae local.

A Criaturada grande de Dalcídio Jurandir na paisagem cultural Belém-Marajó presta a devida homenagem e agradece a Neuton Miranda por sua patriótica dedicação ao povo, pela primeira vez, verdadeiramente participante da cidadania brasileira. Sua morte não será em vão. Com o seu exemplo de vida outros combatentes serão forjados na luta para os próximos embates que virão.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

universidade da maré: o que é?

Olá, gente das ilhas filhas da Pororoca!

Cabocos unidos jamais serão vendidos! Vamos nos unir com fé na nossa senhora, a universidade da maré... Cativar amigos para sensibilizar o povo da UNESCO a dar recado dos povos das águas a grandes museus brasileiros e estrangeiros que, outrora ao tempo da casa da mãe Joana, "ganharam" nossa cerâmica marajoara por dez réis de mel coado e nos deixaram na beira a ver navios...

Diz-que é tempo de Mudança climática e doutras lanbanças que deixam a gente desconfiada, mas também, depois de 20 anos a bom esperar aquela APA que não ata nem desata (Art. 13, VI, § 2º da Constituição do Estado do Pará), paresque a coisa vair sair do papel e virar coisa séria como a tal reserva da biosfera no programa "O Homem e a Biosfera - MaB".

Desde de 2003 a gente começou a acreditar na mudança da maré... Em 2007, depois da gente ir se queixar ao bispo (na verdade dois, um da prelazia do Marajó (Soure) e outro da diocese de Ponta de Pedras), ouvimos falar do grandioso PLANO MARAJÓ com a participação da sociedade local afinal de contas, 350 anos depois do Padre Antônio Vieira ter ido prometer a paz lusitana aos sete caciques Nheengaíbas...

Como se sabe, o resultado foi que os colonos deram-lhes porrada aos padres e meteram a fulhança aos índios catequizados. Em 2008 a maré repontou como nunca dantes neste País das Palmeiras... Foi a vez do Território da Cidadania - Marajó, que como dizia mea avó, "quando a esmola é grande o santo desconfia"...

Ah, esta gente! Os cabocos tomamos gosto na Participação e já vamos querer Compensação... Não é justo, afinal de contas, de 350 anos no "ara veja" das pazes de Mapuá? Pois que os grandes museus da nossa cerâmica marajoara nos passem recibo do material tirados dos tesos - Pacoval e Camutins em maior parte - e como consolo do saque cuidem de adotar, sem demora, O Nosso MUSEU DO MARAJÓ como parceiro de projetos de responsabilidade socioambiental em favor das populações tradicionais do território de cidadania Marajó...

Olhem as nossas crianças inocentes da ignorância dos seus pais quanto à antiga pilhagem. Aonde foram parar as urnas onde nossos ancentrais repousavam? O que os doutores fizeram de nosso tesouro? Está certo, acreditamos que está bem cuidado lá onde foi parar e que ao relento estaria pior debaixo de pata de búfalo...

Mas já é tempo de prestar contas e dizer para as crianças tudo aquilo que seus avós perderam por besteira.


Foto: Nigel Smith

Então, que se vá acelerando o crescimento da nossa 'UNIVERSIDADE DA MARÉ'!!!


"São, pelos menos, 12 museus que teriam recebido, segundo a pesquisadora, peças e coleções de cerâmica marajoara: American Museum of Natural History (Nova Iorque/ EUA); British Museum (Londres / Inglaterra); Musée de l'Homme de Paris (Paris / França); Musée Thomas Dobrée (Nantes / França); Museo Barbier-Mueller de Arte Precolombino (Barcelona / Espanha); Museo Chileno de Arte Precolombino (Santiago / Chile); Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE/USP); Museu de Etnografia de Genebra (Suíça); Museu de Etnografia de Gotemborg (Suécia); Museu de Pré-História e Etnografia (Luigi Pigorini), Roma / Itália; Museu Nacional do Rio de Janeiro; University Museum (Filadelfia / EUA).

Aí, pois, o recado desta gente, com agradecimentos à Denise Schaan, para que o Brasil e o mundo não mais aleguem ignorância do desastre no fim do mundo.

Recado Caboco
José Varella *
Pena que os cabocos (“caa boc”, saídos do mato) nas ilhas do Marajó, com o analfabetismo congênito herdado desde o tempo dos índios “nheengaíbas” (falantes da língua ruim) não se deram conta da estada em Belém do Pará, da senhora Irina Bokova, primeira mulher a assumir o cargo de diretora-geral da UNESCO, na VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFITEA VI), realizada entre os dias 01 e 04 do corrente.
Se eles soubessem a tempo iriam em comitiva, sob bandeira e cantoria do Glorioso, convidá-la talvez a ser madrinha do Museu do Marajó ( www.museudomarajo.com.br ) e contariam a ela muitas estórias do abandono desta gente, como de costume, sobre o saque dos tesos (sítios arqueológicos) desde o tempo do Barão de Marajó.

Quando o mais letrado disse aos outros da oportunidade perdida, uma velha curadora da tradição do matriarcado marajoara recomendou que mandassem recado à dita senhora diretora-geral lá aonde ela estivesse. Mas, como? Resmungou tio Mundico rezador e folião do Glorioso São Sebastião da Cachoeira, meio desolado: agora é tarde, Inês é morta (dizia isto por ouvir dizer, sem saber do romance do monarca português). A velha insistiu: pega orelhão e telefona ao Zé filho da comadre Otília, diz que eu tô mandando pedir a ele pra se virar e arranjar um jeito de mandar o tal recado à branca...

Sorte minha! O portal Vermelho dá chance a gente, de vez em quando, de falar da Criaturada grande de Dalcídio, o índio sutil. Mas, o melhor recado ao Brasil e à UNESCO na verdade foi dado na obra “Cultura Marajoara”, autoria da arqueóloga Denise Schaan ( www.marajoara.com ) , a marajoara que veio dos Pampas Gaúchos; excelente publicação trilíngue português, espanhol e inglês editada pelo Senac. Só me resta lembrar aos editores que ajuda deles não estará completa enquanto não enviar o livro à representação da UNESCO no Brasil para entrega expressa à diretora-geral em Paris.

Claro, tia Maroca vai me perguntar se eu falei ou não com dona Irina... Ela não entende nada de cerimonial, protocolo, relações internacionais... Tudo isto é grego para a brava gente como a carta do Padre Vieira, no século 17, escrita em bom português aos sete caciques que só falavam nheengaíba, analfabetos de pai e mãe por todas gerações. 'Mas porém” os índios “pescavam” o assunto no vento e os cabocos descendentes hoje não fazem por menos... A velha marajoara confia que o Museu do Marajó é o melhor museu do mundo, porque é “o nosso museu” inventado e fundado pelo grande amigo padre Giovanni Gallo. Como é, “antão”, que as autoridades nacionais e mundiais não “havera” de saber? Se eu me meter a contradizer tia Maria me corta a mesada de açaí e peixe frito por mais de uma semana... Matriarcado é isso!

Amigos e amigas do Museu do Marajó em rede estão a fim de sensibilizar instituições e pessoas sobre a situação periclitante do Nosso Museu e os sérios riscos para conservação da Cultura Marajoara no patrimônio nacional e mundial. Por certo a UNESCO esta sensível aos apelos de diversos países para intermediar devolução de obras de arte e peças arqueológicas tiradas indevidamente de regiões de origem. Todavia, como a larga experiência ensina, nós os cabocos não acreditamos que a periferia da periferia terá nenhum sucesso no confronto ou mesmo de conciliação nesse sentido. Já ficaríamos extremamente gratos se detentores de cerâmica marajoara estabelecessem alguma medida compensatória de responsabilidade social. No ano de 1995, o “Grupo em Defesa do Marajó – GDM” malhou em ferro frio para autoridades brasileiras sensibilizar a UNESCO a editar “catálogo internacional de Cerâmica Marajoara” para a gente marajoara identificar aonde foi parar o tesouro etnográfico que seus antepassados. O pedido entrou por um ouvido e saiu pelo outro... A gente espera compensação há 350 anos, porém o tempo arqueológico virou a nosso favor.

Segundo autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lagos que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas”, datando dos anos 50 do século XVIII (cf. Nelson Papavero et. al. in “O Novo Éden” - Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002, 2ª ed.) descobriu-se o teso do Pacoval do Arari “em 20 de Novembro de 1756, o qual tem o comprimento de 200 braças e 30 de largo;...”. O descobridor admirou-se muito da qualidade da banana (pacova) e da maniva (mandioca) encontrada naquela “ilha”... Todavia, muitas delas (tesos) eram habitadas por “muito Gentio da Nação Aroan, Maruanum e Sacôra [provavelmente, antepassados das atuais populações dos municípios de Chaves, Soure e Salvaterra]. Em muitas das ditas ilhas se tem achado e se acha ainda muitas Pandas, Ingassabas (que é o mesmo que Cantaros ou Potes), tudo muito bem feito, a maior parte dellas que se tem achado é debaixo da terra. Também se tem achado dentro de algumas Pandas grandes ossos de gente e caveiras, d'onde se collige ser costume daquelles índios serem sepultados daquela fórma”. (ob. cit. p. 333).

A ocupação do Marajó por fazendas de gado teve início em 1680 e até o descobrimento do Pacoval passou, aproximadamente, um século de destruição dos sítios arqueológicos. Em 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira depois de passar breve temporada, entre novembro e dezembro, guiado pelo inspetor da Ilha e fundador da vila de Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino da Silveira Frade; repetiu praticamente as observações do autor anônimo na primeira “notícia” transcritas na “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó” (separata da “Viagem Philosophica”, Lisboa, 1783). O que nos leva a pensar que Florentino Frade é, de fato, o autor anônimo. E o Barão do Marajó, ao tratar das escavações que autorizou, em fins do século XIX, para atender ao Museu Nacional e à exposição etnográfica de Chicago (EUA), na qual foi ele o comissão do Brasil, segundo o clássico “As regiões amazônicas”, lastima os saques generalizados dos tesos incontroláveis já àquela altura.

Não falta quem, com certa razão diante das circunstâncias, inclusive do clima equatorial superúmido; diga que levar o material arqueológcico para dentro de grandes museus é mal menor. Outro chegaram a cogitar em levar sítios inteiros para abrigos museológicos... Contudo, em quarenta anos de revolução museológica com o conceito de ecomuseus podia-se inventar outra coisa além do trivial. De certa maneira foi o que sucedeu na pequena e isolada Santa Cruz do Arari, no berço da Cultura Marajoara... Quando, em 1972, por necessidade e acaso, pescadores acusados como “ladrões de gado” forneceram “cacos de índio” (fragmentos cerâmicos recolhidos de sítios arqueológicos saqueados) ao padre Giovanni Gallo que assim inventou “O Nosso Museu do Marajó”: manifesto empoderamento comunitário diverso de museus de elite...

Dois anos após o “Encontro em Defesa do Marajó” (Ponta de Pedras, 30/04/1995), o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) foi chamado a realizar levantamento de sítios arqueológicos no traçado para abertura de canal artificial do projeto Hidrovia do Marajó, para tal indicando a arqueóloga Denise Pahl Schaan, a fornecer subsídios ao EIA/RIMA para licenciamento ambiental da controvertida obra no trecho entre os rios Atuá e Anajás (ver o estudo botânicos e ecossistêmico “Campos e Florestas das bacias dos rios Atuá e Anajás”, Dário Dantas do Amaral et al., Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2007).

Começou ali a iniciação da pesquisadora com o chão de Dalcídio. O resultado, a par do conhecimento científico prenhe de sensibilidade e intuição, concluiu por um libelo contra a incúria do tempo. São, pelos menos, 12 museus que teriam recebido, segundo a pesquisadora, peças e coleções de cerâmica marajoara: American Museum of Natural History (Nova Iorque/ EUA); British Museum (Londres / Inglaterra); Musée de l'Homme de Paris (Paris / França); Musée Thomas Dobrée (Nantes / França); Museo Barbier-Mueller de Arte Precolombino (Barcelona / Espanha); Museo Chileno de Arte Precolombino (Santiago / Chile); Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE/USP); Museu de Etnografia de Genebra (Suíça); Museu de Etnografia de Gotemborg (Suécia); Museu de Pré-História e Etnografia (Luigi Pigorini), Roma / Itália; Museu Nacional do Rio de Janeiro; University Museum (Filadelfia / EUA).

Aí, pois, o recado de dona Maria com agradecimentos à Denise Schaan, para que o Brasil e o mundo não aleguem ignorância. O povo marajoara já foi se queixar ao bispo (em verdade aos dois bispos do Marajó) sobre a pobreza extrema e desse modo o Presidente Lula respondeu com o Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária, o Plano Marajó e programa Território da Cidadania em curso. Sobre o estado falimentar do Museu do Marajó e o fim terminal dos sítios arqueológicos talvez será preciso ir ao Papa. Mas, alguém há de nos atender.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Bothropos marajoensis: o mistério da vida e da morte no tempo da vela de jupati.

Do ninhal metafísico selvagem surdiram-se curupiras, matintas-pirera e bichos do fundo. Donde também nasceu e cresceu, desmesuradamente, a Cobra grande neolítica "cultura marajoara dentre outras amazônicas criações", com suas fases da lua e datações arqueológicas determinadas por Betty Meggers e Clifford Evens: Ananatuba, 3.500 anos, Mangueiras na ilha Caviana e costa da ilha grande, ano 900 a.C., Formiga em Chaves e lago Arari, 100 a.C. Marajoara, lago Arari, 400 da era cristã. Aruã, Chaves, Caviana e Mexiana, ano 1400. Rastos mortais de gente ancestral nos sítios de bichos encantados...

Bothropos marajoensis: mistério da vida e da morte no tempo da vela de jupati. Aqueles que têm o sentimento da terra e conservam respeito à antiguidade neotropical dizem que do negro ventre da primeira noite do mundo o tempo paleolítico surdiu-se como a larva que se transforma no besouro caturra dos campos dentro de um caroço de tucumã (Astrocarium vulgare). Pra não dizer que era o ovo primordial da Boiúna. O andar do tempo ficou impresso na tatuagem da epiderme das pedras na serra Paytuna, Carajás, Serra das Andorinhas e outras partes do corpo mágico tapuia, tal qual como reza o mito fecundador da amazonidade profunda.

a singular história do Museu do Marajó

a minha história do Museu do Marajó não é necessariamente a "verdadeira" e nem idêntica a dos outros. "Assim é se lhe parece"... Acho, em primeiro lugar, que Marajó é o museu! O que se vê no acervo Giovanni Gallo é a ponta da flecha a indicar algo que está oculto (patrimônio imaterial) com a longa história da invenção, destruição, ruína e reconstrução da Cultura Marajoara desde o barro dos começos do mundo das águas.

o que se não pode jamais é descolar o nome e a tragédia do fundador do Museu do Marajó da odisséia coletiva do Povo Marajoara. O jesuíta daltônico nos ensinou, mesmo sem ele ler o ciclo Extremo-Norte (na lista de obras não-recomendáveis aos católicos segundo catecismo da Arquidiocese de Belém à época de dom Mário de Miranda Vilas-Boas), a ver direito aquilo outro que o romanceiro de Dalcídio Jurandir mostra ao país inteiro e por isto merecido o prêmio "Machado de Assis" (1972), por acaso no ano de fundação do Museu, em Santa Cruz do Arari; porém carecia vivenciar o dia a dia da gente marajoara meio século depois da lavra literária de "Chove nos campos de Cachoeira" e "Marajó", na antiga vila de pescadores de Salvaterra.

O padre Gallo não fez um museu para elite letrada se admirar das habilidades dos índios e cabocos. Ele viveu com estes últimos como um pescador panema entre camaradas da pesca artesanal lacustre. Então, inventou um museu para ser espelho do modo de vida daquela gente, a fim de que ela se enxergasse na arte primeva de seus antepassados. Seria este talvez o recado escrito e desenhado nos "motivos ornamentais" da cerâmica marajoara. A história daquele museu é a ousadia de um bravo a remar contra maré quando ele podia ir de vento em popa por outros mares... "Vá embora!" "Por que não vai embora?"... Era o conselho mais certo para se desembaraçar do intruso. Só de teimoso o padre se deixou implodir até o fim. Depois morreu e se fez enterrar na ilharga do museu que lhe serviu de mausoléu como a um faraó visionário. Dizem que já lhe foi visitar na tumba um estranho com estória de que o padre era, paresque, reencarnação de um grande cacique marajoara que fez império naquela ilha...

Eu não duvido. Pois, não longe dali andou o padre grande dos índios, Antonio Vieira, a ressuscitar o falecido dom João IV (1656) que por sua vez fora ressurreição de dom Sebastião, para efeito da Restauração do reino de Portugal. Mutatis mutantis, se para restaurar a Cultura Marajoara for preciso; haja então a ressurreição do Gallo, Galinho das crianças do Arari... Não é verdade que Dalcídio lhe mandou recado do Rio de Janeiro, em correspondência com Maria de Belém Menezes? Dizendo o romancista da Amazônia: "A foto das crianças de Jenipapo me comove, são meus netos marajoaras, alegres apesar da miséria..."

É muito interessante visitar o Museu do Marajó www.museudomarajo.com.br em Cachoeira do Arari. Mas será melhor o viajante de primeira viagem visitar antes a literatura da "ilha" grande do Marajó (por exemplo, www.dalcidiojurandir.com.br ) e se iniciar nos antigos mistérios da Cultura Marajoara ( www.museu-goeldi.br e www.marajoara.com ). Há que escolher qual Marajó quer conhecer primeiro, o dos campos alagados ou das "ilhas" (isto é, das florestas de várzea)... O Marajó da chuva (inverno) ou do verão (estio). São paisagens culturais distintas todavia da mesma ditadura da Água. No verão o turista pode correr de jipe pelo leito seco e poerento do lago Arari, com poucos dias de chuva as margens do igarapé Por-Enquanto ficam mais lindas e atapetadas de flores da estação chuvosa do que os jardins de Maria Antonieta, em Versalhes (França).

O livro-reportagem de Giovanni Gallo, "Marajó, a ditadura da água" é curso superior completo de antropologia do caboco. Mas, espera lá! Do caboco do Arari, melhor dizendo, do caboco do lago Arari que é mundo à parte... Marajó é mundo grande e diverso, a complexidade em forma de geografia física e humana. A tal "ilha" do Marajó são ilhas e o "arquipélago" é apenas metade do território marajoara que passa pela terra-firme adentro através da microrregião Portel. Onde se encontra (pasmem!) uma formidável floresta nacional, a Flona Caxiuanã que auberga a Estação Científica Ferreira Penna, do Museu Paraense Emílio Goeldi.

eu não sei porque tenho mania de rejuntar as coisas, como um carapina calafeta juntas de casco de embarcação. Não costumo deixar nada de fora duma boa conversa de compadres e vou logo emendando enredo como quem tece rede de pescador. Se o IBGE garante que Marajó é mesorregião do tamanho de um país, como o vizinho Suriname, por exemplo; por que a gente vai reprizar aquela velha estória rasa de "ilha" da Barataria e museuzinho mofino e fechado que finda sendo paroquial pelas portas da primeira rua da pequena cidade de Cachoeira? O padre Gallo tansformou "cacos de índio" em modelos para artesanato, uma usina falida da extração de verbas públicas sob promessa de óleo vegetal tirado de incentivos fiscais da velha Sudam para virar sede de um Museu exemplar... Alguém falou em sustentabilidade econômica? O Museu do Gallo apesar dos pesares já deu mais emprego e renda para o povo de Cachoeira do que a lendária Oleica comprada e indenizada com dinheiro do dito museu. Ou não? Cadê o meu contador de estória?

Por que não podemos nós ir além da beira-rio para os campos-gerais? Que nem o menino Alfredo, na cidade grande, a correr montado no cavalo do pensamento em busca de Andreza em fuga pelos campos carregados de solidão e chuva montando búfalo na garupa do vaqueiro Edmundo... Mundo, mundo... Vasto mundo. Ninguém se lembra mais da velha freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Rio Arari (1747), então a exposição Giovanni Gallo é ótima, é fundamental, mas ela não contempla nem mesmo toda história do município de Cachoeira do Arari.

E a história de Cachoeira é a história da colonização do Rio Arari a partir do primeiro curral de gado na ilha do Marajó (1680). A conquista da "ilha" do Marajó é de 1623, tomada de Gurupá (aliás Mariocai) aos holandeses e estes já praticavam escambo com as populações tradicionais do Amapá, Marajó e Xingu desde fins do século XVI... É muita história que falta contador para contar todos os contos. Então, por que se empresta tanta fama ao padre Gallo e ao escritor Dalcídio se eles abominavam o culto da personalidade e queriam falar do povo, da criaturada grande; e nada mais?

tenho pra mim, com testemunho do criador do Museu do Marajó (cf. Giovanni Gallo, "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara"), que o caboco Vadiquinho merece estátua na praça principal de Santa Cruz do Arari devido à feliz provocação feita ao pároco com aquele misterioso pacote de "coisas que não prestam" (fragmentos de cerâmica deixados ao léu por saqueadores de sítios arqueológicos). Dar todo crédito à inventiva do Gallo é salvar apenas metade da história do Museu do Marajó. Mas ele deixou claro que o personagem principal é o homem marajoara... Sem este homem desamparado o ilustre missionário dos imigrantes da Suíça poderia até ter sido carmelengo do Papa, mas depois de morto seria realmente finado e não estaria vivinho da silva na memória dos cabocos, que nem os seres encantados do mundo invisível.

Certo que o filho de Vadico (Osvaldo) não havia a educação patrimonial que hoje ainda falta àquelas pobres crianças do Alto Anajás, cuja família desamparada coleta água da chuva em vasos funerários de seus ancestrais, datados de mais de mil anos, como se vê em fotos publicadas pelo professor Nigel Smith, da Universidade da Flórica (EUA). O "savoir faire" do caboco é exaltado no Museu do Marajó, mas sua ignorância viaja em imagens cruéis pela rede mundial de computadores. Acho que eu e o leitor temos mais que reagir para mudar essa história triste.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

a casa do mano Walcyr

nosso caçador de visagens completou setenta janeiros. Sem ser convidado lhe fiz uma visita de surpresa acompanhado pelo mano Antonio Smith, editor do dito cujo. Quase morri de inveja do "tapiri" urbano do escritor parauara... Eu só não me senti mais por baixo, porque na qualidade de invasor da sala de residência de minha patroa para fazer dela acampamento literário à guisa de "home office" caboco; estou sob a guarda de São Francisco Marajoara (escultura profana do mano Ismael Ferreira, de Ponta de Pedras), estatueta de pedra de Dom Quixote (chavecada amorosa da cara metade) e a imagem de Santa Rita de Cássia achada no campo de batalha da guerra do Paraguai por meu bisavô Raymundo Pereira, Voluntário da Pátria, segundo a história oral da família. Nada mal para um ateu graças a Deus (eu não creio em bruxos, mas eles existem... Como as visagens da coleção do mano).

A casa do Walcir Monteiro é um fantástico beco sem saída: exceto a porta do "matapi"... Quem entra e começa a conversar com o dono esquece o relógio. Aí um moço antigo como este que vos fala tem precisão de fazer xixi de hora em hora. Foi assim que com autorização do anfitrião descobri o Beco da Bosta (para o vulgo W.C.). Ah, sô primo! Quem dera as ruas da Cidade fossem iguais: limpinhas e cheias de graça que nem o Beco da Bosta. Melhor que o ap do Walcyr só se todo o condomínio aderisse e investisse para se transformar em residencial inteligente a fim de despertar a cidade.

Se eu tivesse mais um grau do que tenho na academia do peixe frito decretaria o prêmio Beco da Bosta para gestores e pesquisadores decididos a enfrentar e vencer o grave problema da Poluição urbana.