sexta-feira, 13 de janeiro de 2012



A CONQUISTA DO OCIDENTE MARAJOARA:
Índios, Portugueses e Religiosos em Reinvenções Históricas

Agenor Sarraf Pacheco
UNAMA-PA

Aqui no hay supremacias: océano y río celebran las mismas núpcias em las águas. Y solo el viento presencia los grandes gestos de la naturaleza. El Atlántico sumiso, deja que las aguas de barro manchen su azul profundo.
Pe. Salvador Aguirre, O.A.R
La Prelatura de Marajó

Se a selva fecunda e ora verde falasse, teria com toda a certeza muito o que dizer. Diria sem dúvida que houve tempo em que ela foi manchada de rubro, pelo sangue de tantos inocentes imolados covarde e implacavelmente.
Emílio Vieira Barbosa
Marajó: Estudo etnográfico...

A escrita e as reinvenções da história
Desvendar novas rotas de navegação, apreender o regime dos ventos e das águas, estabelecer contatos com exímios remadores para captar de suas sabedorias, como situar-se numa labirintuosa planície, que parecia se recompor quanto mais se avançava no curso de suas águas, foram prováveis preocupações que fizeram parte das motivações de nações, grupos e homens, ao pretenderem viajar, desbravar, povoar, colonizar, catequizar, (re)cristianizar a Amazônia Marajoara no correr dos séculos XVI ao XXI .
Na primeira década do século XVII, Portugal aventurou-se por esses ambientes “abastecidos de águas e talhados de rios” (DANIEL, 2004:93), porque franceses, ingleses, holandeses, irlandeses, antecipando-se em navegar por essas rotas, aprenderam a dialogar com seus povos para estabelecer, ali e acolá, novos contatos. O medo de perder aquele importante território, contudo, jogou a Coroa Portuguesa águas adentro do Mar-Dulce. Desenharam-se, a partir dali, motivações à fabricação de inúmeras memórias, argamassa para escrita de muitas histórias. Do lugar social e cultural de onde fossem produzidas e narradas, ganhariam continuamente outras conotações.
Uns produziriam verdadeiros épicos da saga Portuguesa na terra das Amazonas , outros, a narrativa de uma tragédia dizimadora de povos e culturas nativas . Ainda apareceriam aqueles que, ao trazerem à tona a fragilidade de um projeto de conquista, mostraram sequentes derrotas portuguesas para nações indígenas marajoaras, os “invencíveis na sua ilha inexpugnável” (AZEVEDO, 1999:69), como prova da negligência inicial à “arma do evangelho”.
O conjunto dessas escrituras demonstra tratar-se de encontros, resultando em frequentes tragédias para consolidar um projeto eurocêntrico, sustentado em pilares de expansão territorial, acúmulo de riquezas e ampliação de exércitos de almas. Tais ordenamentos dizimaram inúmeras nações indígenas que, ao se verem forçadas a criar outras táticas de combate e resistência, inventaram novas fronteiras e configurações étnicas, políticas e culturais. Os moventes sentidos e desdobramentos daqueles encontros iniciais parecem, no entanto, ainda hoje atormentar a escrita da história regional.
Nesse campo, crônicas, relatos e escritos religiosos inquietam historiadores. Quando se pretende apreender indícios para a produção de uma história colonial, sem estes documentos dificilmente conseguir-se-á ir muito longe. Para lidar com eles, todavia, é preciso exercitar o olhar político, o saber interrogativo, na perspectiva apontada por Beatriz Sarlo (1997:59) , caso contrário estar-se-á mais uma vez, fazendo da escrita da história uma prática de colonialidade do saber (LANDES, 2005) . Isenta da arte do questionamento, essa escrita continuará a reproduzir narrativas excludentes, que pouco conseguirá fazer implodir o contínuo das experiências humanas (BENJAMIN, 1994), em pontos mais críticos das mediações culturais.
A partir de agora, o texto adentra narrativas de doloridos confrontos vividos em palcos de águas, matas e campos alagados, entre portugueses e nações indígenas, no processo de conquista dos Marajós a partir de 1616. A perspectiva é, ao visibilizar a importância desempenhada pela região para o entendimento mais inclusivo e contextualizado da história social da Amazônia , questionar por que suas memórias documentais ficaram nos subterrâneos da escrita de uma História Regional/Local, que luta por sair de uma condição marginal, frente aos ditos epicentros dominantes, construtos da História Nacional/Global (MIGNOLO, 2003).
Ao revisitar textos de cronistas e historiadores, percebe-se que o modo como documentaram encontros, tragédias e negociações, entre conquistadores e populações a serem conquistadas, acabaram por consagrar uma memória religiosa, que entre as inúmeras derrotas e extermínios ocorridos nos Marajós, apresenta-se em vertente exclusivamente vencedora .
Em outras palavras, o ícone da Companhia de Jesus na Amazônia, padre Antônio Vieira, continuamente heroificado e até santificado, tanto pelos cronistas da Ordem, quanto pela historiografia regional, transforma-se na única arma que faz o presente marajoara não se esquecer de seu passado, ou melhor, o passado reatualizado desdobra-se em espelhos do presente. Não é o presente que parece manipular o passado, mas é a força de narrativas passadas quem dirige o casco da história presente.
Da expulsão da Companhia em 1759, até o início das políticas de recristianização, iniciadas nas últimas décadas do século XIX, com novas ordens vindas da Europa, como a dos Agostinianos Recoletos que chegaram ao Pará, em 1899, assumindo, a partir de 1930, a região marajoara, o passado distancia-se do presente em 140 anos. Porém, a memória que se firmou como referência contra o esquecimento é a do “grande pacificador dos índios de Marajó”, o padre Antônio Vieira.
Pelos fios do passado, o texto a partir de agora vai percorrer passagens da história colonial marajoara, refotografando rostos de sujeitos e suas contendas, desvendando maneiras como a escrita da história composta para falar do processo de conquista portuguesa da região, forjou uma memória religiosa como definidora dos caminhos que levaram a criação de um acordo de paz entre nações indígenas marajoaras e Coroa Portuguesa. Em outras palavras, o autor deste texto ao procurar recolocar o lugar social da região marajoara no entendimento da efetivação do projeto colonizador português no Vale Amazônico, com destaque para o seu lado ocidental, o Marajó das Florestas, vai desvelando o movimento de fabricação desta memória da Companhia de Jesus.

Conflitos entre rios e florestas

Os encontros entre nações estrangeiras, portuguesas e populações indígenas locais foram muitos. Do lado marajoara, diferentes etnias e cosmovisões de mundo apresentaram-se. Interesses diversos fizeram estrangeiros movimentarem-se, com a ajuda de saberes locais, por aquelas desconhecidas terras de “homens anfíbios” . Mas as nações indígenas, guardiãs daquele imenso Vale, já com experiências de outros contatos , situadas em margens de rios e igarapés sentiram os novos rumores, aguardaram a afirmação dos presságios e colocaram-se de sentinelas para não serem facilmente capturadas.
A montagem de uma estratégia geopolítica era fundamental para Portugal assegurar a posse efetiva da imensa região, com seu desaguar a perder de vista por labirínticos rios e florestas. Antes da conquista, no entanto, era preciso dominar e proteger rotas e roteiros entre o Maranhão e o Grão-Pará. “Nessa faixa litorânea localizavam-se os índios Tupinambás, em grande número. Era preciso, de um lado, garantir a navegação e seu controle entre São Luís e Belém, assim como um caminho fluvial-terrestre, pelo interior; e, de outro, ocupar a faixa litorânea, submetendo e/ou pacificando os índios, pela força e pelos métodos persuasivos disponíveis” (MAUÉS, 1995:39).
O labirinto de ilhas, os “Marajós”, e seus habitantes cravados na foz do território a ser conquistado, não assistiram, passivamente, aquelas estranhas chegadas de gentes tão diferentes de suas visões humanas. Experientes em contatos e guerras tribais anteriormente vividas, entre si e com outras nações, Aruãns, Sacacas, Marauanás, Caiás, Araris, Anajás, Muanás, Mapuás, Pacajás, entre outras e os batizados de Nheengaíbas , enfrentaram as armas portuguesas por quase 20 anos. Esse processo já demonstra quão difícil foi a conquista da Amazônia e como os nativos habitantes, “da ilha que estava atravessada na boca do rio Amazonas, de maior comprimento e largueza que todo o reino de Portugal”, posicionaram-se diante da voraz ganância lusitana.
Situados em diferentes pontos geográficos da grande ilha de Joanes, essas nações lutaram em defesa de seus territórios, modos de ser e viver. Imaginários e memórias sobre suas forças, resistências, habilidades em lidar com canoas, remos, arcos, flechas, táticas de esconderijos entre matas e rios, podem ser encontrados em crônicas de religiosos do século XVIII, historiadores e viajantes do XIX, além de obras que compõem a historiografia regional contemporânea.
O padre Jesuíta João Daniel foi um destes cronistas que, depois de viver 16 anos no Estado do Maranhão e Grão-Pará, redigiu memórias do Vale Amazônico, dando conta de uma multiplicidade de experiências cotidianas de habitantes da região. Segundo Salles, tematizando terra, homem e cultura, os dois volumes de sua obra “ornadas de mitos e símbolos, lembra a lavra do rapsodo, aquele que canta ou recita estórias populares, adaptando-as a seu modo sem perder a autenticidade” (DANIEL, 2004:13) . No intuito de falar das infrutíferas expedições portuguesas em suas primeiras tentativas para conquistar o “gentio” da grande ilha, cujas entrelinhas já deixam ver o processo de fabricação de uma memória que evoca a atuação dos missionários na região, escreveu o padre cronista:

Muito deu que fazer esta nação aos portugueses, com quem teve muitos debates, contendas, e guerras. (...) Expediam-se tropas contra eles, mas os Nheengaíbas, (...) zombavam das tropas, escondendo-se por um labirinto de ilhas, e de quando e quando dando furiosas investidas, já em ligeiras canoinhas, que com a mesma ligeireza com que de repente acometiam, com a mesma se retiravam, e por entre as ilhas se escondiam as balas, e já de terra encobertas com as árvores, donde despediam chuveiros de flechas e taquaras sobre os passageiros e navegantes, que além do risco da vida, se viam impedidos a navegar o Amazonas, para onde não tinham outro caminho, senão pelo perigoso furo do Tajapuru (...) (DANIEL, 2004:368-9).

Apesar de, em 1623, os portugueses terem conquistado, na fronteira com a grande ilha de Joanes, os fortins flamengos ainda existentes em Santo Antônio de Gurupá e N. Srª do Desterro, construídos pelos holandeses e o forte de São José de Macapá, erigido pelos ingleses – objetivando assegurar a conquista do rio das Amazonas e expulsar “os piratas europeus” da região –, necessitavam organizar “entradas pelos sertões com o objetivo de descobrir terras, riquezas e escravizar os silvícolas” (BARROSO, 1953:83). Para tanto, os colonizadores precisavam vencer outro obstáculo: dominar Aruãns, no lado oriental e Nheengaíbas, no lado ocidental, que povoavam o arquipélago de ponta a ponta.
O professor José Varella Pereira comenta que “afastados os estrangeiros, entretanto, a guerra não havia solução de continuidade, visto que os insulanos não se submetiam aos vencedores e nem permitiam passagem franca de canoas do Pará, através dos Estreitos de Breves em direção ao rio das Amazonas” (PEREIRA, 2007:197) . Para tanto, uma segunda expedição, organizada em 1654 pelo capitão Aires de Sousa Chicorro, capitão-mor do Grão-Pará, chefiada por João Bittencourt Muniz, composta de 80 arcabuzeiros e cerca de 500 selvagens Tupinambás, “deveria levar a destruição deshumana numa guerra injusta e inqualificável” (BARROSO, 1953:83) frente aos primitivos habitantes marajoaras.
Vieira Barbosa narrou que, imaginando Muniz ser o conflito tranquilo e a vitória certa, mandou um emissário com um destacamento oferecer o perdão e a paz aos selvagens, com a condição de tornarem-se fiéis a El Rei. Não lhes inspirando confiança, travou-se novamente um “choque sangrento, horrível e desastroso para os invasores. Os Nu-Aruacs, como onças de suas selvas e campos sem fim, encurralaram-nos num cerco de musculosos guerreiros cor de ébano, pondo-os numa situação crítica. O troar mortífero, inútil e ineficaz dos mosquetes, era respondido pelo silvo das ‘taquaras’ e das flechas, que zunindo iam cravar-se balançantes no peito dos soldados de Muniz” (Idem:84).
À medida que avança a narrativa de Barbosa sobre “A conquista do Marajó”, emerge um tom grandioso, cheio de lances cinematográficos, tornando o próximo combate uma espécie de épico da história regional, com o objetivo de enaltecer os filhos da terra, desqualificar os portugueses para chegar ao “Valor do Missionário”. Barbosa conta que o capitão João Bittencourt Muniz, ao tomar conhecimento do resultado do contato, ficou “assombrado com o que viu; permaneceu como que pregado ao solo, com os movimentos instantaneamente paralisados” (Idem:84).
Os bravos Tupinambás entraram naquela luta com o apoio de portugueses e suas armas. Ao final da “batalha medonha e encarniçada”, apesar de morrerem 250 Tupinambás, somente 30 portugueses e inúmeros habitantes da ilha, a expedição não saiu vitoriosa. No ano seguinte, organizou-se uma nova tentativa para acabar com a valentia dos bravos guerreiros marajoaras, sob a orientação do novo governador André Vidal de Negreiro, apoiada pela Câmara de Belém. Essa empreitada pretendia o extermínio e o cativeiro das nações marajoaras, mas “quem havia de pacificá-los eram os santos Missionários e não os portugueses, com os seus mosquetes e arcabuzes impiedosos, que lavraram o ódio, a perseguição, a fome, a miséria e a destruição no seio desses pobres seres, que apesar de serem bárbaros, eram também humanos” (Idem:87).
Nesta narrativa, Barbosa colocou-se contra atitudes dos conquistadores portugueses, mas ficou embebido na lógica de que o sucesso do projeto civilizador estaria assegurado somente com a presença da religião . “Os jesuítas iluminados simplesmente pelo ideal cristão, não encontraram nenhum obstáculo que os impossibilitassem de cumprirem os seus deveres religiosos. (...) Fazia esses sacrifícios inauditos e inenarráveis, para atrair os ameríndios à civilização” (BARROSO, 1953:89).
O renomado historiador português, João Lúcio de Azevedo (1855-1933), especialista nos estudos sobre a Companhia de Jesus, conhecido entre os pesquisadores brasileiros que se debruçaram nos estudos coloniais a partir das primeiras décadas do século XX, narrou: “Em 1659, Vieira consegue reduzir as tribus de Marajó. O feito é extraordinário e quase milagroso. O que não tinha alcançado a força das armas, obtem-o a doçura do evangelizador, a fama repercutida de suas virtudes, a sublime confiança com que vai metter-se entre os cannibais: tal Anchieta entre os tamoyos” (AZEVEDO, 1999:73).
A valorização que Azevedo e Vieira Barbosa fizeram do papel dos religiosos, no processo de conquista da Amazônia, incorpora-os ao movimento de fabricação de uma memória sobre a Companhia de Jesus na região, com destaque para os feitos de padre Antonio Vieira. Como historiadores dos séculos XIX e XX, esta construção vinha sendo arquitetada desde o período colonial pelos próprios regulares. Cardoso e Chambouleyron (2003), por exemplo, trabalhando relatos jesuíticos no Maranhão e Grão-Pará do século XVII, captam em diferentes passagens das crônicas e relações escritas pelos religiosos, um contínuo noticiar de martírios vividos pela Ordem .
Um episódio recorrente em obras que compõem a historiografia Amazônica a esse respeito é o naufrágio, ocorrido em 1643, com a viagem do “padre Antonio Figueira e quatorze missionários”, saída de Portugal em direção ao Maranhão e Grão-Pará. Moreira Neto é um dos autores que apresenta essa narrativa:

Luís Figueira conseguiu recrutar, nos vários colégios da Companhia em Portugal, quatorze missionários, todos portugueses, a quem se deveriam somar mais dois, do Maranhão. O navio alcançou a ilha do Sol, nas proximidades de Belém, onde encalhou e mais tarde foi destruído pela maré. Parte dos passageiros, entre os quais Luís Figueira e outros padres, tomaram uma jangada e, com ela, foram dar à ilha de Marajó, onde os índios Aruans, em guerra com os portugueses, os mataram a todos (MOREIRA NETO, 1992:67).

A persistência do fato na escrita da história regional fez algumas narrativas incorporarem ou silenciarem certos elementos . Independente dessa questão, a qual abriria uma outra averiguação , interessa acompanhar a maneira como a própria escrita missionária foi sendo importante ferramenta, não somente contra o “naufrágio do esquecimento”, mas como a Companhia gostaria de ser vista tanto pelo presente quanto pelo futuro.
Obviamente não se pretende negar o papel desempenhado pelos religiosos como grupo de destaque na conquista da Amazônia, – que, para o caso marajoara, a atuação de Vieira, como insiste o professor Varela, foi fundamental –, mas sinalizar que o próprio historiador, muitas vezes sem observar armadilhas do documento ou da informação que recebe de outras pesquisas, ao passá-la adiante sem inquiri-la e cotejá-la a outros enunciados históricos, vai contribuindo para reatualizar a memória de determinado(s) sujeito(s), ajudando na reconstrução de sua(s) identidade(s) social(is). Como reflexo, outros rostos e trajetórias vão sendo desfiguradas.
Apoiado nos debates acalorados pelo professor Varella, é possível dizer que quando se discute a conquista da Amazônia, geralmente não se leva em conta o lugar estratégico que os Marajós desempenharam nesse processo. Como se vinha acompanhando anteriormente, as expedições organizadas por capitães portugueses, apoiados pelos Tupinambás para derrotar aruãns e nações nheengaíbas, não obtiveram sucesso, apesar de o medo das armas de fogo os terem forçado a destruir suas aldeias da beira do rio, construindo lugarejos no centro daquela ilha alinhavada por igarapés, igapós e lagos. “Que não podendo esses índios ser localizados em nenhuma parte ficaram eles habitando toda a ilha, e lutando com táticas de guerrilha e uso de setas envenenadas que apareciam de repente e atacavam para recuar, rapidamente, em suas canoas a velas de jupati, diante da exasperação dos colonos e seus arqueiros desarvorados” (PEREIRA, 2007:197).
A exposição acima é parte de fragmentos de uma carta escrita pelo padre Vieira à Coroa Portuguesa, depois que conseguiu um acordo de paz, entre os dias 22 a 27 de agosto de 1659, com chefes das sete nações Nheengaíbas no rio Mapuá, no interior daquele que ficaria conhecido mais de um século depois, como o espaço rural do município de Breves (Idem:197). A partir dali, finalmente minimizaram-se antigas hostilidades, iniciadas desde a tomada do Forte de Santo Antônio em Gurupá, o que não significou a efetivação de um acordo de cavalheiros, fossem com religiosos ou com colonos portugueses.
Sobre a saga da Companhia pelos rios da Amazônia, o padre João Daniel, em suas memórias de cárcere escreveu que inúmeros inconvenientes praticados por parte dos portugueses, para tentar vencer os Nheengaíbas com balas de escopeta, só deixaram de ocorrer quando as “armas do Evangelho como prudência, mansidão e paciência” entraram em cenas da conquista. “O grande Vieira, expondo a sua vida pela dos portugueses, e aumento da pátria, se ofereceu” para ir até os bravos guerreiros, “acompanhado do seu Santo Cristo, o melhor peito de aço” de todos os confrontos, usando a mesma tática com a qual a Companhia “conseguiu a paz nas maiores empresas dos portugueses em todas as suas dilatadas conquistas da Ásia, África” e agora da América (DANIEL, 2004:369).
Daniel conta ter sido, com essa arma, que o padre Vieira meteu-se entre os indômitos Nheengaíbas, sendo bem recebido, “próspero sinal de sua embaixada, e faustos anúncios do desejado efeito. Propôs-lhes com a sua inata eloquência e natural retórica as conveniências da paz com os portugueses, os grandes danos da guerra e, sobretudo, os muitos bens da fé de Cristo, que lhes ia pregar” (Idem).
Deixando os Nheengaíbas menos bravos, relata Daniel, Antônio Vieira tirou do peito a imagem do Santo Cristo e entregou aos índios, “dizendo-lhes que ali lhes deixava aquele tesouro que mais estimava, e lho dava por penhor do muito que os amava; que considerassem diante dele as grandes conveniências, que lhes propunha, e que esperava depois lhe dessem resposta do que ajustassem entre todos” (Idem); feito isso retornou para Belém.
No ano seguinte, depois de voltar de Lisboa, “o grande Vieira” reencontrou-se com os Nheengaíbas do rio Mapuá. Ao desembarcar, os índios foram levar-lhe “a dita imagem que lhes tinha deixado em refém e com o mesmo respeito a veneraram em todo aquele ano que a tiveram consigo” (Idem). Conta Daniel que depois de colocarem a imagem nas mãos do padre e tendo discutido entre si a proposta apresentada, cessaram as perniciosas guerras de 20 anos, resolvendo abraçar a fé de Cristo e fazer pazes com os portugueses (idem).
Aquele tratado, firmado em 1659, assegurava a implementação de duas linhas de frente da política portuguesa no Vale Amazônico: a liberdade para se navegar pelos estreitos de Breves, porta de entrada à extração de muitos haveres, riquezas e passagem obrigatória para quem desejasse alcançar Macapá e a Guiana Francesa; e afirmava a presença e importância da missão jesuítica na pacificação do gentio através dos aldeamentos.
No caso dos Marajós, após o acordo que possibilitou o trafegar livre das canoas pelos estreitos da grande ilha, os missionários da Companhia criaram um primeiro aldeamento no sítio do próprio Mapuá, iniciando o difícil processo de catequização daqueles que aceitaram ali morar. O padre João Daniel conta que depois, esse aldeamento foi transferido para a missão da Ilha de Guaricuru (Melgaço) (Idem:369-370), dedicada com uma boa e bizarra Igreja ao glorioso São Miguel, além de boas casas de residência dos seus vigários e diretores (Idem:392).
Esta missão era composta por índios Nheengaíba, Mamaianás e alguns poucos Chapouna. Além da aldeia de Guaricuru, os religiosos fundaram próximo dali a aldeia Arucará, de onde originou-se a Vila de Portel, e a aldeia Araticu, transformada depois da expulsão dos religiosos, em 1759, em vila de Oeiras (Idem), hoje Oeiras do Pará, terra de onde se desmembrou o município de Bagre.
O cronista da Companhia narrou que a aldeia de Araticu estava situada em grande planície, com muita fartura de peixe e caça. Compunha-se de índios de várias nações, dentre essas ganharam destaque, nas escrituras, Guaianases e Maraanuns. Já a aldeia Guaricuru tinha, em sua frente, uma linda baia e um furo para o Tajapuru. Era muito farta e muito sadia porque estava sempre lavada pelos ventos.
No fim daquela larga baia, encontrava-se outra formada pelas águas dos rios Pacajá e Guanapu (Anapu). Às margens daquela nova baia localizada em terreno alto, na parte sul, estava a “grandiosa missão de Arucará”, hoje vila de Portel. “É a mais populosa de todas as que tinham a seu cargo os missionários jesuítas, com uma bela Igreja não só no material, mas também no formal de bons ornamentos. Compõe-se das nações nheengaíbas, mamaianases, oriquenas e pacajazes” (Idem:393).
Seguindo o percurso do cronista jesuíta, deixando a parte sul em direção ao Cabo Norte, o cruzamento das águas do Amazonas com o rio Xingu, faz avistar a fortaleza de Gurupá. Ali existia uma “povoação de portugueses anexa com seu vigário, e com um muito devoto convento de religiosos capuchos da província da Piedade, donde costumavam prover todas as missões da sua administração. Ao pé há uma pequena povoação de índios” (Idem:394).
Foram os capuchos da Piedade os construtores das primeiras povoações dos aruãns, aldeados nas ilhas Cavianas, Mexianas e de Santo Antônio, hoje Chaves , na chamada contra-costa dos Marajós, na parte Norte do Amazonas. Sem maiores delongas, Daniel vai deixando rastros daquilo que considerou como bom trabalho realizado por esses missionários e modos como catequizaram o gentio marajoara.

O passado na esteira do presente


Como membro da Companhia, Daniel, nas passagens em que falou das nações indígenas marajoaras, especialmente da parte florestal, construiu uma memória harmônica de vivências entre religiosos e habitantes da região. Deixando de lado, por exemplo, a tese da inconstância da alma selvagem, tão discutida entre os estudiosos do período, aspecto fundante na leitura dos tempos de recristianização da Igreja na Amazônia Marajoara, sua escrita beira um tom romanesco.
O padre jesuíta procurou mostrar que qualidades como afetividade, justiça e honestidade, apresentadas pelos filhos das robustas nações Nheengaíbas, foram resultantes do belo processo de educação cristã conseguido pelos religiosos. Por outro lado, não deixou de engrossar a tinta quando discorreu sobre a expulsão da Ordem pela Lei Pombalina, apontando veementemente estragos causados à vida das populações locais.
A força dessas memórias fez-se presente nos primeiros escritos produzidos pela Ordem dos Agostinianos Recoletos, ao assumirem, em outubro de 1930, a Prelazia de Marajó. “Expulsados los jesuitas en 1759 por el masón Pombal, todo quedó en el mayor abandono. Los indios se dispersaron, el culto quedó interrumpido o continuado en algunos lugares por sacerdotes poco celosos. Las Iglesias fueron desapareciendo, quedando hoy, y no completa, la iglesia de Monsarás” (Livro de Coisas Notáveis de Soure, 1930:1-2).
Memórias coloniais redigidas por D. Frei Caetano Brandão, bispo do Grão-Pará, na Era Pombalina, foram recuperadas em escritos agostinianos para mostrar que a ignorância religiosa dos marajoaras de Breves era retrato do abandono espiritual, ao qual ficaram relegados esses moradores, depois que a Coroa expulsou os padres da Companhia de Jesus da região.

(...) No ano de 1786, a 12 de Junho aportamos a um pequeno lugar denominado Breves. Consta de alguns moradores pardos ou índios. Não tem igreja, nem capela, e dista da freguesia que é a vila de Melgaço um dia de viagem, por isso se acham muitos ignorantes na doutrina. Perguntando a um grande número de mulheres e meninos quem era a Mãe de N. S. Jesus Cristo não souberam responder-me. Preguei e ensinei o que pude em tão pouco tempo. Recomendei a um homem mais inteligente que instruísse aos meninos, para o que lhe dei alguns livros. Crismei, visitei-os nas suas casas estimulando-os ao trabalho corporal e ao de salvação, e às cinco horas da tarde os deixamos (SOARES, 1946:138).

Cinquenta e três anos depois que Frei José reescrevia o que noticiou o prelado para que a memória da Companhia de Jesus e seus feitos não fossem esquecidos da história marajoara, isto é, em 1999, os bispos da Prelazia de Marajó e da Diocese de Ponta de Pedras, em pronunciamento sobre a triste situação econômica e de vida da região, não deixaram de homenagear padre Vieira e nominá-lo como inspiração daquela nova luta religiosa e social: “Diante dessa situação, os bispos da região de Marajó sentem-se no dever de homenagear o Pe. Antônio Vieira, cujo terceiro centenário de sua morte, comemoraram em 1997 as Igrejas de Portugal e do Brasil. Vieira chefiou, nos idos de 1659, a primeira expedição missionária ao Marajó e proclamou, em carta dirigida ao rei de Portugal, o extraordinário êxito da sua missão” (Pronunciamento, 1999:s/nº).
Conforme as escrituras dos bispos, Vieira, por ser “perseguido pelos colonizadores foi obrigado a voltar para Portugal e lá, no memorável Sermão de Epifania, proclamou a exigência evangélica para adotar um posicionamento da Igreja diante das injustiças praticadas contra o povo, sobretudo pelas Câmaras de Belém e São Luis” (Idem).
Na imorredoura memória do padre que não se curvou diante dos poderosos, os bispos marajoaras, mais de 300 anos depois, vestiram-se como Vieira para entrar, na arena da luta social, em defesa da dignidade, justiça e em prol de populações marajoaras subjugadas por poderes locais e regionais. Como se pode perceber, a confecção das teias do passado, cuja moldura é o retrato do erudito padre missionário, foi tão artisticamente tecida, que suas vestes e seus exemplos são reutilizados como armas na invenção de um presente às vivências marajoaras.
Por fim, é preciso ainda recuperar aspectos da ambígua importância dos missionários coloniais na história da região. No próprio pronunciamento dos bispos é possível depreender tais dimensões. Se o padre Antônio Vieira foi o único a conseguir estabelecer o acordo de paz em 1659, depois das sequentes derrotas portuguesas para nações Nheengaíbas, tornando possível o acesso e tráfego de canoas e embarcações aos rios marajoaras, acabou abrindo as portas da região à escravização e extermínio dos aborígenes. “Esse contato ‘pacífico’ teve efeitos perversos para as populações indígenas que foram deculturadas, destribalizadas, e dispersas pelo território amazônico e pela costa norte da América do Sul” (Idem).
As sofridas pelejas enfrentadas por homens e mulheres amazônidas empurradas para a contramão de benesses produzidas pela abertura da região ao capital internacional, na atualidade, precisam mais do que nunca, de acordo com a visão dos religiosos marajoaras e amazônicos, de um “Vieira a brandir o martelo de sua eloquência em favor dos sem-voz e sem-nada, solicitando aos ‘com tudo’ a conversão do coração e das atitudes, porque se não houver conversão, serão camelos tentando abrir o buraco da agulha para entrar no Reino dos céus” (MATA, 2005:46).
Nutrindo-se de aspectos do viver missionário colonial para reforçar sua atuação em territórios do grande labirinto de ilhas, a Ordem dos Agostinianos Recoletos recriou, na contemporaneidade, papéis exercidos pelos Jesuítas. Nesses meandros, manipulou memórias históricas, projetando-as conforme suas conveniências, justificando, entre os sentidos de sua presença na região, a necessidade de não esquecer os precursores da missão em tempos de recristianização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, João Lúcio. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Belém: SECULT, 1999.
AGUIRRE, Salvador. La Prelatura de Marajó (Brasil). In: Misiones de los Agustinos Recoletos. Actas del Congreso Misional O.A.R. (Madrid, 27 agosto – 1 septiembre 1991). Studia 5. Roma, 1992. (Institutum Historicum Augustinianorum Recollectorum)
BARROSO, Antônio Emílio Vieira. Marajó: estudo etnográfico, geológico, geográfico na grandiosa ilha da foz do rio Amazonas. Manaus: Associação de Imprensa do Amazonas, 1953.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”, In: Obras Escolhidas, vol. 1, SP, Brasiliense, 7ª edição, 1994.
CARDOSO, Alírio Carvalho. Belém na conquista da Amazônia: antecedentes à fundação e os primeiros anos. In: FONTES, Edilza (org.) Contando a História do Pará. Da conquista á sociedade da borracha. Vol. I. Belém: E. Motion, 2002.
_____________________e CHAMBOULEYRON, Rafael. Fronteiras da Cristandade: relatos Jesuíticos no Maranhão e Grão-Pará (Século XVII). In: PRIORE, Mary Del e GOMES, Flávio. (org.) Os senhores dos rios: Amazônia, margens e história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, pp. 33-60.
CASTANHO, D. Amaury. Una visita diferente. In: Boletin de la Província de Santo Tomas de Villanueva da Ordem dos Agostinianos Recoletos. Año XLII, octubre-diciembre, 1983, nº 515, p. 249.
DANIEL, João (1722-1776). Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. V.1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3ª ed. Belém: CEJUP, 1992.
LANDES, Edgar (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latinoamericanas. Tradução Júlio César Casarin Barroso Silva. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005.
Livro de Coisas Notáveis da Paróquia de Soure. 19 de outubro de 1930, digitalizado.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In: Projeto História 17. São Paulo: PUC-SP/EDUC, nov/1998.
LUXARDO, Líbero. Marajó: terra anfíbia. Belém: Grafisa, 1978.
MACIEL, Ana Amélia Barros de Araújo. O manto do Marajó: Chaves de aldeia dos índios Aruãns à cidade. Imperatriz: Ética, 2000.
MATA, Pe. Raimundo Possidônio C. A Igreja na Amazônia – Resgate Histórico. In: MATA, Pe. Raimundo Possidônio C. e TADA, Ir. Cecília (orgs.). Amazônia, desafios e perspectivas para a missão. São Paulo: Paulinas, 2005.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém: CEJUP, 1995.
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento limitar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
MONTERO, Paula (org.) DEUS NA ALDEIA: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006.
MOREIRA NETO, Carlos Eduardo. Os principais grupos missionários que atuaram na Amazônia brasileira entre 1607 e 1759. In: HOORNAERT, Eduardo (coord.) História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992 (Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina – CEHILA).
NETTO, Ladislau. Investigação sobre arqueologia brasileira. Arquivos do Museu Nacional. Rio de Janeiro, 1885 apud NETO, Miranda. Marajó: desafio da Amazônia. 2ª ed. Belém: CEJUP, 1993.
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meio de comunicação. São Paulo: EDUSP, 1997.
SOARES, Fr. José do S. Coração de Jesus. In: Boletin de la Província de Santo Tomas de Villanueva da Ordem dos Agostinianos Recoletos. Ano XXV, septimbre, 1946, num. 282.
THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: questão sobre a relação entre História Oral e as memórias. In: Projeto História 15. São Paulo: PUC/SP, novembro, 1997.
TUPIASSU, Amarílis. A palavra divina na surdez do rio Babel – com cartas e papéis do Pe. Vieira. Belém: EDUFPA, 2008.
PEREIRA, José Varella. Em entrevista a Lílian Leitão - O acordo que sela a conquista lusitana. In: Amazônia em Outras Palavras. IPAR – Instituto de Pastoral Regional, nº 13, Belém, Dezembro/2005, pp. 35-37.
PEREIRA, José Varella. Atualidade de Antônio Vieira na Amazônia: uma controvérsia do século XVI para reanimar o século XXI. In: Antônio Vieira - Asas da Palavra. Revista do Curso de Letras do CCHE. Belém: Unama, v.10, nº 23, 2007. Semestral, pp. 193-207.
Pronunciamento – O povo marajoara na ótica da Igreja Católica. Belém, 1999, p. s/nº.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. 8ª ed. RJ: Record, 1988.


Um comentário:

José María Souza Costa disse...

Muitissimo, interessante
CONVITE

Primeiro, eu vim ler o seu blogue.
Agora, estou lhe convidando a visitar o meu, e se possivel seguirmos juntos por eles. O meu blogue, é muito simples. Mas, é leve, dinamico e sobretudo Independente. Palpitamos sobre quase tudo. Diversificamos as idéias. Mas, o que vale mesmo, é a Amizade que fizermos.
Estarei grato, esperando VOCÊ, lá.
Abraços do
http://josemariacostaescreveu.blogspot.com