domingo, 21 de março de 2010

carta aberta: S.O.S. Cultura Marajoara!

A seguir, razões históricas de natureza antropoética [merci, Edgar Morin; grãomestre da fraternidade latina e cidadão do mundo] e autodefesa territorial do estado de direito democrático brasileiro na Amazônia atlântica. Cujo escudo além do próprio delta-estuário do grande mar de água doce chamado "país das Amazonas" (Amazônia) -- "mare nostrum" equatorial --, é, naturalmente, o jus solis da monumenta ancestral manifesta na complexidade da antiga Cultura Marajoara, de 1500 anos de idade: "mounds builders" da opera do barro e do mistério dos começos do mundo amazônico.

Patrimônio arruinado por desleixo local e cumplicidade global. Alienado por dez réis de mel coado no próprio berço e exilado dentre festas acadêmicas ou contrabando em ricas coleções exóticas de propriedade exclusiva de grandes museus, no País e estrangeiro, que a pobre gente ribeirinha não viu nem ouviu falar... Todavia, por necessidade e acaso, a letra torta de um caboco morador sem eira nem beira da história inventa na filosofia da chuva e tenta agora dar conta tardia do recado dos antepassados.

Primeiro passo, sem ilusões, para uma caminhada talvez de mil léguas... Até ancorar no Araquiçaua [lugar mítico da saga do Bom Selvagem, porto do Sol na Terra sem males] ou renascimento futuro do tempo arqueológico do Arapari reconquistado [país do Cruzeiro do Sul, nosso Brasil pré-colombiano, resgatado no século XXI com as metas do Milênio da ONU].

Petição popular para efeito de responsabilidade socioambiental das nações civilizadas em compensação às pobres regiões da Terra historicamente espoliadas por suas próprias metrópoles e terceiros países imperiais. Tímida iniciativa da academia do peixe frito, pedido de socorro sob invocação do milagroso São Benedito da Praia ou Ossaim (orixá das plantas medicinais), patrimônio imaterial do Ver O Peso: abertura de processo de tombamento da Cultura Marajoara como símbolo magno nacional da cultura da República Federativa do Brasil brasileiro.

Arapari: continente do Cruzeiro do Sul

Durante as antigas navegações indígenas, a gente vinha de canoa a remo ou à vela de jupati -- sob força de vento e maré -- das ilhas do circum-Caribe a conquistar o Arapari (constelação do Cruzeiro), na Terra Firme (continente). A misteriosa palavra de origem astral se aplica a várias coisas na terra, inclusive a certas árvores de boa madeira subindo ao céu equatorial tal qual observatório astronômico. Em língua geral amazônica, a velha palavra tapuia quer dizer "pari do sol" (limite, cerca do dia). Clara astronomia das velhas navegações caraíbas em migração das Antilhas para as Guianas guiadas pelas estrelas em busca do continente Sul.

Era tempo do herói mítico Anakayuri, célebre cacique da legendária confederação do Oiapoque. O mundo se repartia, então, em ilhas e antilhas... Tudo um enorme arquipélago com a maior de todas as ilhas sendo a "grande oval insular" das Guianas (Raja Gabaglia). Na verdade, o sub-continente das Guianas. Do qual o mar do Caribe e o mar de água doce Pará, com todas suas mil e tantas ilhas -- Marajó ao meio -- se integram através da piscosa Corrente marítima das Guianas.

Por outra parte, depois de descer dos contrafortes dos Andes para o litoral meridional do Brasil vinham os tupis e guaranis em migrações guerreiras contra os avoengos Tamoios [tamuya / tapuya] conquistando, palmo a palmo, o dito país do Cruzeiro... Em demanda da utopia selvagem [Yby marãey, terra sem mal]. Assim, entre guerra e paz Norte-Sul, chegou o dia, no Nordeste, em que se enfrentaram pela primeira vez os primeiros conquistadores do Brasil.

O tremendão Tupinambá, de longe o mais valente e aguerrido; empurrou os Jê-Tapuias para o planalto central e fez recuar os aruaques para as Ilhas do Pará, velha Tapuya tetama [Tapuirama, terra Tapuia]. Até aí o tempo antropoético pré-Amazônico, o qual continua até nossos dias coexistente à invenção da Amazônia.

tesouro escondido na foz do rio-mar

Face à crise global-urbana existe chance para enjambrar uma filosofia "amazônica" na constelação de outras regiões de culturas orgânicas "primitivas" ultrajadas pela desmedida arrogância da Civilização? Que pensar, por exemplo, do enigma da incomparável arte primeva da Amazaônia pré-colombiana pisoteada por numerosos e infelizes Planos de Desenvolvimento? 1500 anos contemplam a imensa solidão dos campos da ilha grande do Marajó. Velha Cultura ilhada, abandonada e deixada aos búfalos entre chuvas e esquecimento.. Aí, entretanto, um filósofo humanista e naturalista acharia talvez o elo perdido na passagem do homem natural ao homem lúdico: inventor de cultura "primitiva", engenheiro de aldeias suspensas sobre tesos (colinas artificiais) feitos de barro dos começos do mundo com a lição dos peixes do mato filhos da Cobragrande.

O que isto tem a dizer ao mundo industrial supertecnizado de nossos dias? Por necessidade e acaso, este tesouro da humanidade foi encontrado na foz do maior rio do "planeta Água", no dia 20 de novembro de 1756, informa o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, célebre autor da monumental "Viagem Philosophica" (1783-1792), na separata "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joannes, ou Marajó"(1783).

Refere-se à inspeção que o capitão Florentino da Silveira Frade, sesmeiro da fazenda Ananatuba e fundador da freguesia de N.S. da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747) realizou a serviço do capitão-general e governador do Grão-Pará e Maranhão [Amazônia portuguesa] Francisco Xavier de Mendonça Furtado; diligência prévia para extinção da Capitania hereditária dos barões da Ilha Grande de Joanes (1665-1757) e sequestro das fazendas de gado da Companhia de Jesus na ilha do Marajó (1757). Convém recordar o histórico de luta e resistência das nações indígenas da "Ilha dos Nheengaíbas" [Marajó], que com exceção do comércio de escambo com feitorias holandesas no Amazonas para fins e troca de missangas por gados do rio, nunca aceitaram ocupação estrangeira nenhuma.

Por último, uma confederação de caciques Nheengaíbas [Anajá, Aruã, Camboca, Guaianá, Mapuá, Mamaianá, Pixi-Pixi e outras etnias] tendo à frente o ladino Piié Mapuá aceitou negociar a paz com o célebre payaçu (padre grande) Antônio Vieira. Acordo concluido pela instalação da missão jesuítica das aldeias de Aricará [Melgaço] e Aracaru [Portel] com índios descidos da aldeia do rio Mapuá [Breves], ano de 1659.

Mesmo assim, apesar da primeira explusão dos Jesuítas (1661) com Vieira em desgraça na corte e entregue ao tribunal do Santo Ofício; mais a doação da pacificada ilha dos Nheengaíbas para dar lugar à Capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665) ao secretário de estado Antônio de Sousa de Macedo, por el-rei dom Afonso VI; a ilha do Marajó permaneceu fechada ao colonizador até 1680, quando Francisco Rodrigues Pereira meteu a cara diante ao "perigo dos índios bravios [Aruãs], desertores e escravos fugidos" que existiam nos centros daquela cobiçada ilha, "maior do que o reino de Portugal". Os ditos centros, povoados de índios guerreiros e quilombolas valentes; guardaram o segredo dos tesos do Pacoval do Arari e do rio dos Camutins [urnas funerárias de cerâmica marajoara] por mais um século...

Desde então, com o Diretório dos Índios (1757) e expulsão dos padres (1759), a paz das grandes matriarcas e caciques mortos foi quebrada no alto das necrópoles e antigas aldeias suspensas. Dormiam em silêncio há milhares de anos sobre campos alagados e no secreto recesso de "ilhas" de mata em meios às campinas. Expostos à ignara curiosidade e avidez dos "civilizados", os tesos (sítios arqueológicos) não cessaram nunca de ser arrombados e saqueados na famosa casa da mãe Joana como atesta o Barão de Marajó em seu livro clássico "As regiões amazônicas" do fim do século XIX. Até restar, apesar do aviso da diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres (cf. revista do SPHAN, 1937] no estado lastimável de ruína em que hoje se encontra.

deixem de besteira: venha a nós a Armada Brasileira!

Noves fora a mina de estudos acadêmicos, simpósios e cursos recheados de hipóteses e teorias sobre o homem amazônico para honra de grandes museus e centros de pesquisa sem cheiro de povo, a criaturada grande de Dalcídio Jurandir (populações tradicionais) não pesca nada do assunto. Desta maneira, a ancestral Cultura Marajoara poderia ser o muro das lamentações do Povo Brasileiro se, pelo menos, este tivesse oficialmente amparado o nosso Museu do Marajó como plataforma para educação patrimonial. Coisa que a gente precisa, no sentido de empoderamento de um legítimo e soberano desenvolvimento nacional.

É verdade que São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro ficam distantes do rio Amazonas. Mas, políticamente falando, embora habitando a mesma paisagem cultural Belém do Pará não fica mais perto do Marajó nem tem maior interesse acadêmico neste assunto de preservação da velha Cultura Marajoara do que as ditas metrópoles. Pesquisa expedita comprovaria o que se vem de dizer. E assim se explica a tragédia de fundo no apartheid etnicossocial da Cabanagem (guerra-civil de 1835-1840) e a síndrome evasiva da "cobiça estrangeira"...

Por incrível que pareça, sem muita verba nem verbo o Projeto "Nossa Várzea" de regularização fundiária de terras de marinha, da SPU; já fez mais pelas populações tradicionais das ilhas no sentido de recuperar sua identidade territorial do que os grandes sistemas nacionais de Educação e Cultura juntos. Pois, sabem lá os ribeirinhos da vida do que se está falando? A bacia geocultural Anajás-Arari (polígono de sítios arqueológicos) depois de ter sido berço de uma civilização neotropical deu espaço a lugar de chorar miséria frente a monumentos naturais das nações indígenas da América do Sol, desgraçadamente extintas sob a genocida colonização das terras baixas do trópico úmido sul-americano.

Oxalá, o Brasil democrático decida vir instalar a II Frota verde-amarela na antiga aldeia dos guerreiros Aruãs! A velha etnia senhora das armas das Ilhas, provavel causa do nome "marajó" dado pelo inimigo hereditário Tupinambá em reconhecimento à invencível resistência marajoara. Gente que foi obrigada pelo poder colonial a trocar de nome para "Chaves" importada do velho Portugal a mando do Marquês de Pombal.

Junto com as armas nacionais a oceonografia equatorial e a hidrologia amazônica poderia se desenvolver com a particicipação estratégica daquelas antigas populações marginalizadas. Segundo o fundador do Museu Paraense Emilio Goeldi, Domingos Soares Ferreira Penna, chamavam os Aruãs à sua ilha grande "Analau Yohynkaku"... Mas, os Aruãs não chegaram antes de 1300, dizem os arqueólogos. E já a célebre Cultura Marajoara existe desde o ano 400 enquanto se acham vestígios paleolíticos de 5 mil anos AC e de 9 mil AC em toda a Amazônia...

Então nós não estamos sendo vítimas de um surto de exaltado bairrismo, mas falando da PRIMEIRA CULTURA COMPLEXA DA AMAZÔNIA. Ou seja, do mais antigo Cacicado em região amazônica. Só depois vieram as culturas complexas Tapajós, Maraka e outras menos notáveis, todavia todas importantíssimas para Amazonizar o nosso Brasil brasileiro e sua descolonização total e final após 500 e tontos anos... Lembrando ainda que, provavelmente, foram aruãs as primeiras vítimas de escravidão atacados pelos hispânicos na América do Sul [cf. Nelson Papavero et al. em "O Novo Éden": MPEG, Belém, 2002].

Daí que além de aspectos puramente técnicos-militares a defesa do Estado-Nação envolvendo a criação da II Frota brasileira; há que se ater também a importantes aspectos históricos-geopolíticos capaz de mobilizar a sociedade civil com seus poderosos símbolos de territorialidade e profundas motivações antropológicas subjacentes à invenção da Amazônia debaixo da União Ibérica (1580-1640) e posterior integração ao Estado do Maranhão e Grão-Pará, ocorrida de fato em Marajó na "Pacificação dos Nheengaíbas" (rio dos Mapuá, 1659), lenta transição para a Adesão do Pará à independência do Brasil (Muaná, 28 de Maio de 1823).

Se tudo isto não bastasse para empoderamento democrático pelo Povo Brasileiro da sua Amazônia ancestral, talvez fosse preciso reavivar a memória da construção dos direitos que levaram no plano internacional ao reconhecimento do Mar Territorial brasileiro e definição da Lateral Marítima Norte: onde, sem nenhuma dúvida, conhecimentos de velhos marinheiros e pescadores tradicionais ostentam antiguidade incontestável que se reporta à Casa das Canoas e sua história oral memorizada na cultura popular. Então, o patrimônio imaterial revoluciona o campo do direito e dá sustentabilidade ao "uti possidetis" real de 1750 sob prisma novo, posto que tardio. No qual se ancoram os Direitos Humanos dos Povos Indígenas... Curiosamente, malgrado nossa imperial historiografia chapa-branca!

dando cabo à apartação histórica

Qual o problema da História do Brasil? O descobrimento tardio [através da Constituição de 1988] de que o Índio e o Negro, de direito e de fato, fazem parte da Nação...Não somos um "jovem país" de apenas 500 anos, mas uma velha federação de 1500 anos, pelo menos. Prova da Cultura Marajoara, o primeiro cacicado da Amazônia. Todavia, a partir do momento que a nação brasileira se levanta em defesa soberana da nossa Amazônia a intelligentsia tupiniquim há de despertar e filosofar sobre a amazonidade profunda e a monumenta marajoara assume paternidade da civilização autóctone brasileira.

Claro está que nosso patrimônio cultural imaterial inclui o tempo arqueológico, cujos primórdios se escondem no mito da Primeira Noite do Mundo dentro de um "caroço de tucumã" (Astrocarium vulgare) nos campos de Cachoeira do rio Arari... Como em toda outra periferia da Periferia do processo imperial do Ocidente, na Amazônia o estado precede historicamente à sociedade: regra geral do Novo Mundo.

Então a elite colonizada esbarra em outro preconceito, além do complexo de inferioridade mazomba: a suposta inferioridade do barro "pré-histórico" em relação à pedra pré-colombiana com que o Brasil ficaria irremediavelmente atrás da arquitetura Maya, Asteca e Inca... Esquecemo-nos de que sem a resistência relativa do barro ao calor da decolagem de foguetes não poderia a Terra sonhar ainda na conquista do espaço e ocupação da Lua... Se não dá para levar a ilha do Marajó como navio encantado a reboque de Cobra Norato ao Rio de Janeiro, façamos com que Brasília mande a Marinha do Brasil zelar pelo tesouro de biodiversidade e diversidade cultural que a Ilha do Marajó representa na condição de jóia da coroa na cultura nacional.

Cultura Marajoara, símbolo ancestral do Brasil

Logo, a boa filosofia não pode ignorar o papel histórico da mitologia ou da fé das religiões reveladas na arquitetura das civilizações; também na era global mito e história são inseparáveis como o homem e sua sombra. Não deve fechar os olhos a acontecimentos derivados do passado remoto. No extremo-ocidente na América, caimos na mesma armadilha que o velho Nilo arquitetou em pedra no antigo Egito, com imagem no monumento da Esfinge. Não nos damos conta de que tínhamos uma civilização orgânica, dávida do poderoso Amazonas que Herodoto jamais sonhou...

Chegou a hora do Brasil resgatar a monumenta Marajoara, fazer dela símbolo maior da cultura brasileira recuperada das suas assombrações coloniais depois que a "esperança venceu o medo". Os cabocos marajoaras manifestamos a amazônidade primeva, herdada de nossos ancestrais desde mil anos antes da conquista do "rio das Amazonas". Aos antepassados tapuia o maior rio da Terra era, simplesmente, "O Rio":

"GUIENA - Toponímia histórica do rio Amazonas, sob cuja forma aparece no Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, no artigo XI, além de ser citado em vários autores que trataram da história do grande rio.
Étimo: do aruaco 'uêni', água, rio.
Bibliografia: Tavera-Acosta, "Rionegro", 32; Levy Cardooso, "Glossários", 98.
[ver "Toponímia Brasílica", Armando Levy Cardoso", Biblioteca do Exército Editora: Rio de Janeiro, 1961, 389].

Como os senhores professores deste país sabem, o Tratado de Santo Ildefonso é âncora dos direitos territoriais do Brasil, triunfo diplomático da tese de "uti possidetis" real defendida pelo santista Alexandre de Gusmão nas negociações do Tratado de Madrí (1750) e que fez jurisprudência no campo do direito internacional.

O que poucos sabem é que a palavra indígena "guiuêne" [água], na multidão de línguas amazônicas de tronco Aruak teve registro num texto político internacional, como se fora salva do dilúvio por milagre no afâ de deslindar a geografia colonial com a história viva das populações tradicionais; quando já a singular Cultura Marajoara havia atingido o apogeu para morrer e ressucitar no tempo arqueológico. Prova da antiguidade da civilização amazônica que não pára de causar admiração e suscitar novas experiências, como bem demonstra a arqueóloga Denise Pahl Schaan em seu importante compêndio "Cultura Marajoara", publicado pela editora SENAC, São Paulo (2010). Depois da obra de Schaan (ver www.marajoara.com ) não haverá mais álibi capaz de inocentar a intelligentsia tupiniquim e os políticos brasileiros da grave omissão histórica em questão.

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