sexta-feira, 27 de agosto de 2010

o dia do sim do Marajó ao estado do Maranhão e Grão-Pará

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publicado em 2009:

27 de Agosto, dia da paz Marajoara:
350 anos do acordo do rio Mapuá (1659).

trabalho dedicado aos jovens de hoje
e às futuras gerações brasileiras.






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“porque os que consideram a felicidade desta empreza, não só com os olhos no céu, senão tambem na terra, tem por certo que neste dia se acabou de conquistar o Estado do Maranhão, porque com os nheengaibas por inimigos seria o Pará de qualquer nação estrangeira que se confederasse com elles; e com os nheengaibas por vassallos e por amigos, fica o Pará seguro, e impenetravel a todo o poder estranho.”
Antônio Vieira / Carta de 11/2/1660

“... a História não está empenhada na distração das elites, mas na revelação, ao longo do tempo, para o presente e sob a pressão do presente, da dignidade e do valor da existência humana, e, sobretudo, da necessidade de manter viva a esperança na utopia humana.”

José Honório Rodrigues / “Teoria da História do Brasil”.


Clareando a primeira manhã na refazenda marajoara


Os “nheengaíbas” eram povos nuaruaques do arquipélago do Marajó, falavam diversas línguas de tronco Aruak (a “língua ruim”, por oposição ao nheengatu). Não se trata aqui de festejar um evento acadêmico, mas empreender um bosquejo a procura do elo perdido entre o índio e o caboco marajoara. Este último, finalmente, reconhecido em seus direitos de cidadão brasileiro, explicitamente, no parágrafo 2º, VI, art. 13, da Constituição do Estado do Pará (1989), que diz: “O arquipélago do Marajó é considerado área de proteção ambiental do Pará, devendo o Estado levar em consideração a vocação econômica da região, ao tomar decisões com vista ao seu desenvolvimento e melhoria das condições de vida da gente marajoara”.

A APA Marajó foi uma pajelança de constituinte de 1989. Ela encalhou antes de entrar no estaleiro, há vinte anos, nos baixios da política regional do Desenvolvimento insustentável e definhou pelas beiras da tecnoburocracia. Mas, meia dúzia de quixotes afilhados de pajés sacacas viram logo por ali que havia azo de fustigar os donos das ilhas da Barataria. Em 2003, na histórica cidade de Muaná, onde a 28 de Maio de 1823 o povo paraense proclamou sua adesão à independência do Brasil, por ocasião da primeira Conferência Nacional de Meio Ambiente; esta gente aumentou a zoada pedindo além da área de proteção ambiental entregue às calendas gregas, também que Marajó fosse declarado reserva da Biosfera.

No ano de 2007, o recém eleito governo do Estado do Pará assumiu compromisso de participar ativamente do Plano Marajó pedido pelo povo. Logo tirou da reserva morta a APA marajoara trazendo a reboque candidatura da segunda reserva da biosfera da Amazônia brasileira, a ser um dia a rb Marajó / Amazônia atlântica. A “criaturada grande de Dalcídio” animou-se ao ver o desencalhe da APA Marajó como objetivo estratégico de elaborar e executar o zoneamento ecológico-econômico da região de integração Marajó, visando a conservar a biodiversidade e desenvolver a melhoria da qualidade de vida da população marajoara. Quem não quer? A turma que vive às turras com o Ministério Público e com o ministro de Meio Ambiente.
Mas, a restabelecida APA e futura reserva da biosfera Marajó, além de pretender preservar espécies ameaçadas de extinção e amostras representativas dos respectivos ecossistemas do bioma delta-estuarino implementando projetos de pesquisa científica, educação ambiental e ecoturismo; poderá apontar rumos práticos ao Plano Amazônia Sustentável (PAS). Ou seja, a letra morta do parágrafo 2º, VI, art. 13 da carta magna paraense, entrou em campo revitalizado pelo ZEE e vitaminado pela perspectiva do renconhecimento internacional, nos termos do SNUC. Por que razão tão alta decisão de estado ainda não foi propalada por rádio e televisão é um mistério. Mas, vale o que está escrito.

A longa espera da gente marajoara está prestes a terminar, como quem em noite escura vê uma luz no fim do estirão; com a decisão de governo em situar o supracitado dispositivo constitucional no programa de zoneamento ecológico das 12 regiões estaduais de integração do “Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável”. Ao mesmo tempo que o Governo Federal lançou o “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó” e, logo em seguida, o “Programa Territórios da Cidadania – Marajó; inovador conjunto de iniciativas federativas em parceria com a sociedade civil. É claro que os cabocos ficaram pávulos, embora meio desconfiados, pois nunca viram nada parecido ao longo de tantas décadas.

Tudo isto na feliz coincidência dos 20 anos da Constituição estadual e 70 de elaboração dos emblemáticos romances “Chove nos campos de Cachoeira” e “Marajó”, que, em 1939, o escritor Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras 1909 – Rio de Janeiro 1979), em retiro na vila de Salvaterra após cumprir prisão politica em Belém, escreveu como o grito da “criaturada grande” das Ilhas e Baixo Amazonas. Começou assim o ciclo literário Extremo Norte premiado pela ABL, com o “Machado de Assis” de 1972. Mais interessante ainda, nos 350 anos da pax dos Nheengaíbas (27 de Agosto), ano do Centenário de nascimento do “índio sutil”, carinhoso título com que Jorge Amado saudou a seu camarada e confrade da ilha do Marajó.

Símbolos fortes para ser empoderados pelos remanescentes dos Nheegaíbas. Nesta auspiciosa conjuntura, o “Projeto Nossa Várzea” de regularização fundiária, coordenado pela Secretaria nacional do Patrimônio da União (SPU), é concretude do movimento oriundo do chão de Dalcídio, sonho de muitas gerações para recuperar a terra expropriada aos antepassados indígenas para dar sesmarias por conta e obra dos sempre ausentes barões de Joanes (1665-1757).

Para entender a grandeza do que está em curso no Marajó, carece ter em conta o vasto espaço do Plano de Desenvolvimento Territorial em seus 104 mil km², população de 420 mil habitantes. Superfície equivalente a um país como o vizinho Suriname, por exemplo. Com importante detalhe do Marajó, apesar de província estadual, de fato mas não de direito; estar ao centro do delta-estuário da maior bacia fluvial do planeta. Por onde escoa, continuamente, algo como 20% da água doce superficial da Terra e lugar de encontro da corrente equatorial marítima com o gigante Amazonas para formarem a piscosa Corrente das Guianas, responsável pela existência e sobrevivência das populações tradicionais das regiões estuarinas e costeiras, desde a mais remota antiguidade desta gente.

Qual o problema? O problema é que se índio e preto não eram gente durante a invenção da Amazônia (conforme polêmica entre o jurisconsulto Sepúlveda e o dominicano Las Casas, no século XVI), como fica hoje o descendente indígena, “caboclo” por decreto e “cidadão” na letra da Constituição? Se ele não sabe ler nem escrever, se não houver informação social; ainda que se transformasse a velha ilha dos Aruãs em Cingapura amazônica (a malaia tem apenas 710 km² (Salvaterra, o menor município do Marajó tem 1.044 km² de superfície) e mais de 4,8 milhões de habitantes, IDH 0,918 e PIB de 238 bilhões de dólares). O caboco estaria condenado a curtir folk-lore de branco e a coisa ficaria preta (com perdão da palavra, que os irmãos negros não gostam, com razão) para ele e descendência.
Não acreditamos que, realmente, Belém e Macapá tenham consciência do problema marajoara, lá ao longe com suas 2.500 ilhas, as mais próximas destas capitais a dez minutos de avião... Nem as sedes municipais estão 100% a par do que se passa no interior. São mais de 500 comunidades locais dispersas e isoladas sobre vasto arquipelago de 2.500 ilhas e ilhotas separadas por “furos” (meandros), igarapés, igapós e lagos na Ilha de Marajó (50 mil km², a maior ilha marítimo-fluivial do mundo), fartamente irrigada e coberta de campos naturais, florestas de várzea e na terra-firme, além de extensos mangues e praias desertas.
Confins onde, por incrível que pareça, estão chegando bravos servidores públicos do Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária. Brasileiros que estão mudando a centenária da servidão da gleba. Se aqui perto não se sabe desta incrível façanha, há de se saber em Brasília, Rio e São Paulo? É claro que não. Mas, aqui também é Brasil. O que acontece agora é semelhante outrora à remota subordinação do Pará a Lisboa, no século XVII. Quem, iria acreditar naquela carta do Padre Vieira célebre, sobretudo, pela lábia? Ora, onde a historiografia claudica a geografia dos lugares, muitas vezes, ampara a verdade tanto tempo ocultada.

Carecia o governo da República chegar junto aos cabocos, lá onde Judas perdeu as botas. Recantos remotos do mapa onde jesuítas temerários e índios guerrilheiros outrora concordaram em desfazer a fronteira de Tordesilhas para abrir as porteiras do Amazonas aos portugueses e seus “índios cristãos”. Hoje a ver de perto e contar de certo, onde canta a saracura e a cobra fuma crak e baseado em quantidade. Este labirinto insular que estava em abandono há séculos é patrimônio da União, jurisdição do Estado do Pará e autonomia de 16 municípios brasileiros no estirão das ilhas grandes, médias e pequenas com invejável potencial ecológico e econômico, em contraste ao ínfimo IDH da população.

Por levar presença do estado-nação às últimas raias de antigas aldeias da missão dos Jesuítas e do Diretório dos Índios, o Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária, da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), recebeu prêmio de inovação em políticas públicas dado pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). A força-tarefa da SPU no Pará revela uma Amazônia ribeirinha que o Brasil não conhece já que, por motivos óbvios, está ficado sobre a devastação da grande Floresta tropical. Mas, aqui também região-piloto do Plano Amazônia Sustentável (PAS) há diversas devastações, inclusive do meio ambiente. Há, sobretudo, o genocídio do índio marajoara.

Falar bem do Nossa Várzea nesta data histórica do povo marajoara, em lugar de produzir louvores acadêmicos a heróis do passado colonial, é uma forma de incentivar as mais de 40 mil famílias (ou, pelo menos, 150 mil ribeirinhos) atendidos pela regularização da posse da terra a descobrir as causas remotas que transformaram orgulhosos guerreiros em párias desmemoriados. E mais que os motivos históricos da ruína espelhada no IDH de fome desta gente, uma razão vital para restaurar o espaço perdido antigamente.

Na verdade, trata-se de trabalho duro e complexo de realizar, sobretudo, patriótico e humanitário. Desde o primeiro dia de colocar em prática o projeto houve preocupação em estudar o terreno com conhecimento da cultura marajoara e da sociologia das populações tradicionais. Saber da história local com verdadeiro interesse de cidadão e não apenas de técnico tarefeiro. Com certeza, o Projeto Nossa Várzea faz escola de serviço público para além da tarefa institucional. Não é todo dia que a Administração Pública federativa dá a cara nos meandros do extremo-norte brasileiro. Verdadeiro “campi” avançado como foram no passado as demarcações de fronteiras da Amazônia, as equipes de regularização fundiária deveriam contar com apoio e interesse de pesquisadores para também ir estudar “in loco” a emergente etnia “destribalizada”, que é o caboco marajoara remanescente do velho índio nheengaíba marginalizado.

Oxalá, a cabo do processo o caboco não mais se envergonhe de ser índio como foram seus antepassados. E com uso certificado da terra ancestral, a palhoça que o “patrão” não deixava passar de jirau seja logo sítio da futura aldeia onde cultura, ciência e natureza farão boa convivência. A sociedade e o governo ainda não se deram conta do complexo trabalho das equipes de identificação, reconhecimento, cadastramento e concessão de autorização de uso às comunidades ribeirinhas que o Projeto Nossa Várzea realiza em conjunto como os mais profissionais do Plano Marajó e programa território da Cidadania, notadamente nas ações de saneamento e saúde pública nas localidades mais extremas, atacadas pela malária e a desnutrição.

O que nos leva a fazer um paralelo com aquela corajosa missão comandada pelo padre Antônio Vieira em 16 de agosto de 1659. Saindo de Cametá, sem alarde, como mínima tropa e remos tupinambás de costume rumo à desconhecida aldeia dos famigerados Nheegaíbas (hoje reserva extrativista de Mapuá). Com a cara e a coragem para encerra a guerra que já durava 44 anos, impossível de vencer pela força. No entanto, até hoje discípulos de de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro; e eternos admiradores do Marquês de Pombal; não tem interesse para espanar a poeira e tirar as traças desta inacreditável história que procurar a conexão oculta entre escravidão dos índios e servidão da gleba ao longo de quase quatro séculos.

Nomes de ilhas e lugares de atuação das equipes do Plano Marajó nos avivam a memória da antiga geografia dos “nheengaíbas”, menos para dissertação e mais para o sentimento do território diverso e disparatado da democracia brasileira que se estende até aos últimos rincões a ser um resgatados. Ilhas como palavras de um idioma morto e ressuscitado do mapa-geral da infinidade de regiões amazônicas.

Aqui vai amostra toponímica para ilustrar o tamanho do desafio do território da Cidadania no Plano Marajó em andamento: Gurupá velho de guerra (onde, em 1623, começou a virada luso-tupinambá para conquista do “rio das amazonas”), resex Gurupá-Melgaço às ilhargas da flona Caxiuanã reunindo Melgaço (aldeia Aricará, primeira missão jesuítica com índios marajoaras, consequência direta da paz de Mapuá) e Portel (aldeia Arucaru, idem); Ilha Grande de Gurupá (primeira rds das Ilhas, em Itatupã-Baquiá por onde o moço Dalcídio Jurandir foi ensinar filhos do dono do seringal), Urutaí, Caldeirão, ilha Rasa, Cajari, Caju, Pracuúba, Porquinhos, Teles, ilha do Pará; Comandaí; Mapuá (o lugar histórico das pazes ou trégua dos Nheengaíbas), Aramá, Mututi, Aranaí, Mutunquara, Carão, Limão, Maritapina; Furos de Breves, Tajapuru. Costa norte no município de Afuá; Arquipélago do Jurupari (nome do espírito tutelar dos caraíbas, diabolizado pelos cristãos), Pacas, Cará, Serraria, Panema, ilha dos Porcos, Maracujá, Parauara, Baturité, Anajás (nome da segunda etnia mais aguerrida da Ilha), Charapucu. Na contracosta, Chaves (aldeia Aruãs, a mais valente de todas nações indígenas do Pará) com jurisdição sobre as “ilhas de fora” (marítimas) Bragança, Janaucu, Viçosa, Jurupari de Chaves, Caviana (ilha da pororoca), Mexiana, Ganhoão e Machadinho. Soure tem a sua ilha Camaleão.


A União além de extensas terras de marinha, tem unidades de conservação com a flona Caxiuanã (Melgaço e Portel), resex Gurupá-Melgaço, rds Itatupã-Baquiá (ilha grande de Gurupá), reserva extrativista de Mapuá (Breves), resex Pracuúba (Curralinho, São Sebastião da Boa Vista e Muaná) e resex marinha de Soure. O Pará é responsavel pela emblemática APA Marajó de candidatura para reserva da biosfera na lista da Unesco. A integração federativa entre ministérios, secretarias estaduais, prefeituras e organizações da sociedade civil é uma novidade extraordinária nestas paragens. Claro que o processo é complexo, contraditório e potencialmente gerador de conflitos. O que deve ser considerado como da maior importância para o futuro da Amazônia brasileira.

Ao contrário do que a historiografia informa para idolatrar capitães de guerra ou incensar a obra dos missionários; a releitura da formação territorial da Amazônia brasileira explica a razão da demanda popular para Adesão do Pará à independência do Brasil (Muaná, 28 de Maio de 1823) e à República (16 de Novembro de 1889) e justifica o motivo pelo qual o povo foi se queixar aos bispos do Marajó (1999 e 2006) até o Presidente Lula atender e a Governadora Ana Júlia aderir ao “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó”.

Vale lembrar, portanto, que atrás desta demanda histórica do povo marajoara estão – entre chuvas e esquecimento – as incríveis tratativas de paz de Mapuá, quando, pela primeira vez, o colonizador viu-se obrigado a pensar duas vezes antes de atacar de novo as ilhas de passagem do Pará ao Amazonas e precisou confiar aos odiados jesuítas a pacificação das belicosas gentes insulanas sob promessas de paz e liberdade.

Não foi sem contradição e incoerência, porém, que o notável padre Antônio Vieira escreveu seu nome a respeito da liberdade dos índios e a escravidão dos negros. Ele recomendava resignação aos escravos e piedade aos senhores, de acordo com Aristóteles (“tu te tornas responsável por aquele que cativas”) e as palavras de Jesus em oferecer a outra face. Na verdade, Vieira foi precursor dos direitos humanos e da teologia da libertação. Mesmo assim, com o cru realismo da época, ele não via índio nem negro selvagens senão como escravos da natureza... A “liberdade” que defendia para o bárbaro era o “descimento” (abandono voluntáro ou compulsório da vida na selva para o protetorado da aldeia da missão), “brando” jugo da salvação catequética ao abrigo da antropofagia dos inimigos tribais e da razzia das “tropas de resgate” (compradores de escravos). Nem o grande Marechal Rondon escapa de críticas sob o olhar da etnologia contemporânea.

Claro está que os índios, entre a cruz e a caldeirinha, preferiam o mal menor da assimilação cultural na “redução” da Missão à pura escravidão em mãos dos colonos. O diabo que aí perderam a identidade e aprenderam a dissimulação dos brancos até a perfeição do cinismo no Diretório dos Índios (1757-1823). Fingiram tão bem os índios fadados à extinção, que até hoje sob pele de cabocos, passam como gente boa. Isto é, modernos civilizados.

O distraído turista da ilha do Marajó que vê caboco montado em búfalo e considera o animal como símbolo máximo da ilha, não adivinha que há 350 anos o índio era senhor de tudo aquilo. Pelo menos, durante os últimos mil anos. Portanto, terá que ir ao exterior ou aos melhores museus do País para achar coleções do tesouro mais raro e insubstituível da identidade marajoara expatriada sem lenço nem documento.

Não verá mais a imensa biodiversidade lesada, sem direito e compensação de coisa nenhuma. Então, há de concordar que só resta a esta gente esperar de Brasília a nacionalização e de museus estrangeiros detentores de cerâmica marajoara pré-colombiana, cooperação internacional a fim de ajudar o sui generis Museu do Marajó: último bastião da resistência marajoara renascida de “cacos de índio”.
Na história democrática do novo Marajó esta gente pode lavar a guerra suja em Água Boa, utopia de campus para futuras gerações no chão donde Alfredo, alterego de Dalcídio, partiu à conquista do mundo para reerguer a “criaturada grande” das ilhas e Baixo Amazonas. Investir na refazenda do Paraíso do bom selvagem. Fazer indústria de lendas do lago Guajará, reconstruir a casa de Dalcídio Jurandir, em Cachoeira do Arari, cidade-museu da capitania dos barões de Joanes, reizado dos Contemplados do Marquês de Pombal, república popular-universal do Glorioso São Sebastião. Onde o sol ata rede para dormir no Araquiçaua com o segredo do mito da Terra sem Mal acamaradado ao rei Dom Sebastião. Sonhar e cantar é só começar:


Saga dos Tupinambás

Saga dos Tupinambás (14 mil Guerreiros)

Além de todas as coisas
Vai descansar
Onde não há mais temores
Vai descansar

Ata tua rede e dorme
Tem um velho sonho, Tupinambá
Pra Terra sem Mal, caminhas
Leva teus irmãos, junto a sonhar

E me conta, quando fores caminhar no litoral
São quatorze-mil guerreiros, caminhante ancestral

Por rios de sonhos,
Braços cansados,
Confederados corações,
Abrem os caminhos dos Sertões

E a correnteza, traz a sina
Que nos guia.

Navegar em águas
De ondas rasteiras
Todo seu singrar
Na sina das corredeiras
Repousar pela nascente
Num ávido querer
Na sina da vida
De um natante ser
Cantoria de peixe eu canto
Pra velar na liberdade perdida de cada recriar
Seu moço deixe o peixe liberto na maré de seus sonhos
Num instante deixe vagar ao pôr-do-sol
No Araquisawa poder descansar.
(Moacir José)
www.palcomp3.com.br/manumoa

Vieira, sebastianista atilado que não viu o que o “índio cristão” enxergava no horizonte dentro do rio, afiançou: “Na grande boca do rio das Almazonas está atravessada uma ilha de maior comprimento e largueza que todo o reino de Portugal, e habitada de muitas nações de indios, que por serem de linguas diferentes, e difficultosas, são chamados geralmente nheengaibas”. As ditas nações teriam recebido pacificamente os portugueses. Mas, “depois que a larga experiencia lhes foi mostrando que o nome de falsa paz com que entravam, se convertia em declarado captiveiro, tomaram as armas em defensa da liberdade, e começaram a fazer guerra aos portuguezes em toda a parte”. Não se preveniu dali que o mal colonial se acelerasse e, portanto; se confederassem os violentados índios das duas margens do Pará, outrora inimigos manipulados pelos colonizadores. Com eles também os negros, cafusos, curibocas, brancaranas desenganados de tesouros; e dois séculos depois da revolta do tupinambá Cabelo de Velha, também num dia 7 de Janeiro produzissem a maior insurreição popular que já houve na América do Sul, em 1835.


Não importa, afinal, se o cacique Piié de Mapuá disse ou não disse aquilo que o padre grande botou em sua boca e reportou à regente de Portugal vencendo agora a censura e a infâmia do silêncio. Nem interessa, de fato, se houve o encontro do rio Mapuá. Agora vale o que está no discurso concreto da Cabanagem pela simples, porém genial, arquitetura de Oscar Niemeyer no memorial do Entroncamento do passado e futuro desta brava gente do Grão Pará. Vale o canto aceso do carimbó e a dança da “criaturada grande de Dalcídio” sobre a merencória opereta da belle époque. Tal é a marcha inexorável da História.

2

“Desta sorte vivem os Nhengaibas, Guaianás, Mamaianás, e outras antigamente populosas gentes, de quem se diz com propriedade que andam mais com as mãos, que com os pés, porque apenas dão passo, que não seja com o remo na mão, restituindo-lhes os rios a terra que lhes roubaram, nos frutos agrestes das árvores de que se alimentam.”
Antônio Vieira / História do Futuro

“O Principal, chamado Piié, o mais entendido de todos” [...] (disse) “que os Portugueses eram os que agora haviam de fazer ou refazer as sua promessas, pois as tinham quebrado tantas vezes, e não ele e os seus, que sempre as guardaram.”
Idem / Cartas I


Hoje o significado da “paz” de 1659

Desde 1500 com Pinzón e 1542 com Orellana, as relações entre ibéricos e indígenas do delta-estuário Pará-Amazonas foram conflituosas. Todavia, como a longa experiência demostra ao contrário de espanhóis e portugueses, que se apresentaram como senhores de índios e negros no novo continente; coloniais franceses, holandeses e ingleses em desafio ao “testamento de Adão” (tratado de Tordesilhas) para se infiltrar no cobiçado “rio das Amazonas” praticaram comércio de escambo e fingiram ou alimentaram sincera amizade aos índios.

Dentre outros autores clássicos da historiografia amazônica, Arthur Cezar Ferreira Reis, no livro Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira, estuda exaustivamente a concorrência colonial entre potências européias e sua terrível consequência sobre a vida costumeira dos índios, desgraçadamente envolvidos no conflito transposto do velho ao novo mundo.

A criação da França Equinocial (Maranhão e Baixo-Tocantins) e a ocupação holandesa do Baixo-Amazonas foram o estopim da reação luso-castelhana. Nesta, especialmente, a aliança guerreira com os tupinambás teve importância capital para conquista e invenção da Amazônia pelos portugueses. Mas, a integração definitiva das regiões amazônicas dependeu, fundamentalmente, da adesão e participação dos Tapuias, em cada uma destas regiões, tendo a língua-geral ou nheengatu como cimento.

Sobre o conflito aberto entre portugueses e tupinambás do Pará, de um lado, e índios do Marajó, Xingu e Amapá, de outro; Arthur Cezar frisa que em 1632, “Feliciano Coelho castiga severamente os Ingaibas da foz do Amazonas, que insultavam os aldeamentos aliados aos portuguezes e ajudavam os inglezes” e, em 1654, “João de Bittencourt Muniz castiga violentamente os Aruan e Ingahiba. Penetra depois o Jary, onde obtem alliança dos Aroaqui, com os quaes bate os Anybá, inimigos daquelles.” (pp. 30 e 31, 1º tomo).

Em 8 de dezembro de 1655, Vieira escreveu a Dom João IV, para informar sobre a aplicação da nova lei de abolição dos cativeiros, de 9 de abril de 1655. Ele mesmo fora propor a lei em Lisboa há um ano antes. Dá notícia dos padres João Souto Maior e Salvador do Valle que acompanharam expedição do sargento-mor Agostinho Correa, na derradeira vez que os portugueses tentaram submeter os marajoaras à força.

Diz o seguinte, que “à grande ilha chamada dos Joanes (frisei), foi outra missão de dois religiosos, em companhia das tropas de guerra que a ella se mandaram, pelas rasões de que já se fez aviso a vossa magestade”. Os padres [João de Souto Maior e Salvador do Valle] teriam oferecido paz “áquellas nações, mas como é em companhia das armas, e elles estão tão escandalisados dos aggravos que dos portuguezes teem recebido, não admittiram atégora a pratica da paz, e ha poucas esperanças de que venham tão cedo a admittil-a porque dizem que conhecem mui bem a verdade dos portuguezes, e que não querem que os captivem, como tantas vezes fizeram; e esta experiencia tão larga das injustiças que sempre lhes fizemos, senhor, é a maior difficuldade que tem a conversão destas gentilidades.” (cf. Cartas, tomo I, 8 de dezembro de 1655).

Quais fontes, de verdade, havia Vieira para afirmar estas coisas ao rei amigo e seu protetor? Até aí não tinham os portugueses contato com os nheegaíbas, não entendiam a língua “travada” da antiga gente marajoara. O que sabiam da ilha grande era preconceito do “índio cristão” [tupinambá], caçador de escravos. Exceto, provavelmente, algum cativo capturado e internado à força no centro de triagem e catequese que foi a aldeia de Murtigura (Vila do Conde), mais tarde um dos QG's dos rebeldes cabanos.

Estaria Vieira a escrever ficção política ou fazer cortina de fumaça para preservar preciosos informantes? Não devemos nos esquecer que os senhores de escravos tinhm poder legal de vida e morte sobre eles. Contam, por exemplo, que o facinoroso matabugres e idolatrado colonial Bento Maciel Parente promovia espetáculos de gladiadores, fazendo que índios de grupos inimigos lutassem até a morte, só para divertir os brancos entediados...

Uma interessante curiosidade da carta de Vieira a Dom João IV é a frase a “grande ilha chamada dos Joanes”... Quem quer que tenha soprado ao padre-mestre este antigo topônimo (vamos ver, com ajuda do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, cem anos depois, que o padre não o inventou), mesmo sem saber o significado, estava reivindicando ou reconhecendo séculos de antiguidade indígena na Amazônia.

Dez anos depois, a coroa criaria a capitania hereditária da Ilha Grande de [sic] Joannes (1665-1757). Por que não foi capitania da ilha dos “Nheengaíbas” ou dos “Aruans”, como se dizia comumente? Devemos aí imaginar a passagem da história oral para a escrita: não é que, por exemplo, uma pessoa de sessenta e tantos anos de idade sem certidão de nascimento, quando vai ao cartório fique, oficialmente, com um ano de vida... Não, o cara continuará velho, só o registro de nascimento será novo. Tal é o caso da desmemoriada e esfarelada história oral da Ilha do Marajó há, pelo menos, 1500 anos de cultura complexa, cujo documento natalício é a cerâmica marajoara original. Recuperando-se, pedaço por pedaço, séculos depois da “descoberta” oficial nos compêndios.

A capitania foi doada, ao contrário de outras por recompensa de serviços de guerra ou povoamento, ao secretário de estado Antônio de Sousa de Macedo, patriarca dos barões de Joanes que nunca deram as caras na ilha. O último barão saiu-se regiamente “indenizado” pela iluminista coroa em dinheiro grosso e título nobiliárquico de visconde de Mesquitela. Tudo muito civilizado. É claro que até ali, índio, preto e mulheres do povo em geral ainda não eram gente... Os nheegaíbas lesados a peso de cipoada e palmatória, para falar o nheengatu da baronia ou da missão; ficaram por conta da “liberdade” do Diretório dos Índios, na qual faxina do Pesqueiro Real foram eles ex-officio “promovidos” a caboclo, com “l” certinho, na ponta da língua, desde menino.

Os bestas pagaram o pato dos Contemplados na expulsão da Companhia. Como se isto não bastasse, os brancos do pedaço foram comprar escravos negros para fazer o serviço pesado que os indígenas desertaram, fugindo para o exílio na Paricuria (costa do Amapá) e Oiapoque. Donde um dia tinha se abalado para cá em busca do país do Arapari (constelação do Cruzeiro do Sul). Quem quer saber das origens da imigração “cladestina” dos macapás da vida na Guiana ou Amazônia francesa, deveria se informar da história antiga dos marajoaras.

Não se sabe precisar quando, a primeira vez, o topônimo Marajó apareceu na historiografia. Sabe-se, entretanto, na crônica dos padres da Companhia de Jesus que o nome da ilha deriva do rio Marajo-Guassu [Marajó-Açu], onde tiveram os ditos padres sua primeira fazenda na ilha grande do arquipélago, denominada fazenda São Francisco (1686) (origem da nova vila de Ponta de Pedras demenbrada da vila de Cachoeira, em 1878). O nome “Marajó” aparece escrito, pois, anteriormente à “ilha dos Nheegaíbas” e “ilha dos Aruans”, nomes que também precederam o de “Ilha grande de Joanes”.

Marajó ou Mbarayó é palavra em língua-geral, tirada do vocabulário do antigo tupinambá e colada por este ao seu inimigo hereditário. Ao que parece, originalmente era o belicoso habitante da ilha grande (o ousado guerreiro Aruã, que não deu tréguas, de fato, até a segunda metade do século XVIII, quando se refugiou em Caiena e foi vendido como escravo para canaviais das Antilhas donde seus antepassados tinham vindo às Guianas através de Trinidad e Tobago).

Depois o nome da gente “malvada”, pelo uso, designou a baía, o arquipélago e toda região estuarina marcada pela velha cultura nuaruaque. Como se, de início, quisesse dizer apenas “rio do marãyu” ou do marajó (o malvado). Por fim, “marajoara” significa gente da ilha do marajó, o “marãyuara” (com que nosso irmão caboco pronuncia, corretamente, marajuara). Quem torce o nariz ao falar do matuto e diz 'marajoara' é “branco” e fala errado... Preste-se atenção ao falar desta gente, são eles os donos da própria língua que inventam, não os senhores doutores das regras do dicionário.

O rio Marajó-Açu foi chamado rio Pororoca, devido ao estrondo da maré de lua cheia na boca do rio. Lugar da coluna do farol Itaguari, pleno de pedrais debaixo d'água tendo canal retorcido (guá, em tupi). Dito o Itaguari pelos canoeiros da baía do Marajó outrora; passou em português a “ponta das pedras”. Donde o município de Ponta de Pedras e, durante algum tempo entre os anos 30 e 50, município de Itaguari. Palavra nheengatu, misturando línguas diversas, ita e guá ( respectivamente, “pedra” e “torto”, em tupi) e “ári” (rio, em aruaque).

Velhas reminiscências da fronteira étnica nos primeiros séculos da colonização e laboratório da língua geral amazônica, com a missão jesuítica de Gebiré (Barcarena), Murtigura (Vila do Conde) e Samuúma (Beja). A aldeia de Murtigura foi como um campus da boca do sertão. Redução jesuítica onde o índio brabo foi domesticado para servir a Deus e a El-Rei de Portugal, aí índio virou caboco (kaa bok, “tirado do mato”).

O caboco parauara saiu da proveta da Companhia de Jesus a partir da “tribo” dos Caripunas (mestiços “reduzidos” de várias etnias selvagens, dentre as quais, principalmente “nheengaíbas”, nuaruaques). Nheegaíbas foram, em geral, povos Nu-Aruak: complexo fenômeno endógeno caribenho-amazônida surdido de extenso processo de guerra e paz entre os Kalinas (galibis) e os Aruak. Em Marajó, a crônica colonial registrou nomes avulsos de diversos povos nuaruaques, a partir talvez dos Aruã (entre 1300 e 1400): Anaya [Anajás], Mamaianás [Muaná?], Combocas, Paukakas, Pixi-Pixi, Mucuã [Mocoões], Caviana, Mexiana, Guaianá e outros. Mas, antes dos Aruã havia gente muito mais velha (ver esquemas de estudos arqueológicos, notadamente em Denise Schaan), dentre estas os Iona [Yo'na] ou Joanes, segundo memória do sacaca ou joane Severino dos Santos, em 1783.

A toponímia do trecho entre o Itaguari, o Carnapijó [caraipiyo] e o Caripi (Barcarena) é página que linguístas da amazonidade deveriam estudar melhors. Na Amazônia, as raias de Tordesilhas foram, de fato, as ilhas do Parauaú [Pará-Uaçu dos tupinambás e Grão-Pará dos lusos], entre aldeias do Abaeté (Baixo Tocantins) e o mundaréu de Nheegaíbas espalhados desde o Cabo do Norte (Amapá) até Gurupá, entrando Xingu adentro. Naquela vivíssima fronteira, os conquistadores das amazonas poderiam subir e descer tantas vezes fosse. Mas, só passariam à força de remos e arcos do tremendão Tupinambá. Para, conservar o conquistado precisava, todavia, conversar baixinho com o “malvado” batizado e catequisado na igreja.

A pista desta plusível hipótese o próprio Vieira forneceu, quando dos dois “embaixadores” nheengaíbas (escravos do colégio dos jesuítas) enviados aos caciques da ilha grande com uma incrível carta-patente propondo pazes sob garantia da lei de abolição dos cativeiros, de 9 de abril de 1655. Dado surrealista! Pois, a tal carta-patente não poderia ser lida por gente analfabeta que, aliás, só falava em língua aruaque. Que nem agora a Constituição republicana em mãos de meio milhão de cabocos, nas ilhas e subúrbios de Belém e Macapá, garimpos das Guianas, pouco vale para quem mal sabe rabiscar o próprio nome.

Tratava-se, evidentemente, de intencional teatro confiado na habilidade dos tais “embaixadores”. Sabemos como, desde Anchieta, jesuítas empregavam teatro, canto, retórica e poesia como meios de doutrinar índios tidos e havidos pelos catequistas como crianças. Vieira deixa isto explícito ao colocar na boca do cacique Piié o discurso do evangelizador e se auto designar “padre grande” (grande pai, payaçu).


Certamente, estes anônimos cativos eram informantes dos padres. Mais do que ficou escrito, podem eles ter dado notícias que modificaram a imagem de ferocidade com que se justificavam as “guerras justas” e os injustos cativeiros. Foram eles ainda os verdadeiros artífices da paz junto aos caciques rebeldes, como ficou demonstrado, em 1686, no caso dos sacacas. Em 1783, na “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó”, o índio sacaca Severino dos Santos, sargento-mor de milícia da vila de Monforte (antiga aldeia de Joanes, em Salvaterra hoje) diz ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que o verdadeiro nome de sua etnia era Iona (corrompido em língua portuguesa como Joanes).

O sábio de Coimbra concluiu, então, que se deveria grafar ilha grande dos Iona e não de Joanes... Vieira antecipou-se, cem anos antes, escrevendo a “grande ilha dos Joanes”. Fato admirável! Noves fora revelação do santo Espírito ou diabrura do Jurupari. Resta assim a possibilidade de algum índio yo'na (sacaca) perambular pelo pátio do convento, a falar da sua origem entre outros “nheengaíbas” capturados pelo caraíba.

Severino dos Santos explica como, na ilha grande, desde tempos remotos os Iona e os Aruã pelejavam uns contra os outros. Os joanes chamados sacacas habitaram antigamente os centros da ilha e foram empurrados pelos Aruã para a costa de Soure e Salvaterra. Aconselhados pelos Caripunas, amigos de um lado e outro; foram buscar apoio nas armas portuguesas. Por esta brecha os portugueses chegaram a Ilha do Marajó, porém já existia o primeiro curral no Arari (1680). Para sucesso dos joanes tiveram eles boa sorte em encontrar um parente, apelidado João Saputu, que quando moço fora capturado pelos tupinambás. Sapatu, então, foi intérprete e negociador do acordo com os lusos.

O relato de Severino dos Santos diz que, no Pará durante construção da fortaleza da Barra, foram chamados de sacacas pelos outros índios, que isto aconteceu pela pressa com que queriam retornar logo à aldeia, animando-se mutuamente na sua língua, com o verbo “sakakun, sakakun” (apressar). E, finalmente, no retorno com escolta militar puderam surpreender e matar os inimigos Aruã que os perseguiam há séculos. Deu-se o último combate daquela guerra intestina junto à praia do igarapé Água Boa (Salvaterra) e nunca mais os Jones foram insultados pelos Aruã.

Vieira afiança: “Na grande boca do rio das Almazonas está atravessada uma ilha de maior comprimento e largueza que todo o reino de Portugal, e habitada de muitas nações de indios, que por serem de linguas diferentes, e difficultosas, são chamados geralmente nheengaibas”. As ditas nações teriam recebido pacificamente os portugueses. Mas, “depois que a larga experiencia lhes foi mostrando que o nome de falsa paz com que entravam, se convertia em declarado captiveiro, tomaram as armas em defensa da liberdade, e começaram a fazer guerra aos portuguezes em toda a parte”.

Antes de Vieira, o capitão Manuel de Sousa Dessa [de Sá], em 1614, informou a Castela que os holandeses subiam o rio Amazonas fazendo comércio e amizade com os índios. Tal infiltração teria começado ainda no século XVI, cerca de 1599. Para afastar o perigo, o capitão oferecia serviços propondo que os índios fossem atraídos ao partido ibérico por meios pacíficos para ficarem amigos dos Reis Católicos e não dos Hereges.


Em luta contra tupinambás e portugueses do Pará, canoas ligeiras e armadas que os índios do Marajó usavam impunham superioridade, assim entradas às terras indígenas ficavam vedadas. Visto “que nesta terra são todas por agua, em que roubaram e mataram muitos portugnezes, mas chegavam a assaltar os indios christãos em soas aldêas, ainda naquellas que estavam mais visinhas ás nossas fortalezas, matando e captivando; e até os mesmos portugueses não estavam seguros dos nheengaibas dentro de suas proprias casas e fazendas, de que se veem ainda hoje muitas despovoadas e desertas, vivendo os moradores destas capitanias dentro em certos limites, como sitiados, sem lograr as commodidades do mar, da terra e dos rios, nem ainda a passagem delles, senão debaixo das armas”.

Continuava o padre: “Por muitas vezes quizeram os governadores passados, e ultimamente André Vidal de Negreiros, tirar este embaraço tão custoso ao Estado, empenhando na empreza todas as forças delle, assim de indios como de portuguezes, com os cabos mais antigos e experimentados; mas nunca desta guerra se trouxe outro effeito mais que o repetido desengano, de que as nações nheengaibas eram inconquistaveis pela ousadia, pela cautela, pela astucia e pela constancia de gente, e mais que tudo pelo sitio inexpugnavel com que os defendeu e fortificou na mesma natureza”. (grifei).

Ele escreve como geógrafo que se não esteve in loco, pelo menos, houve boa informação de conhecedores dos meandros da ilha grande. Informa com detalhes: É a ilha toda composta de um confuso e intrincado labyrintho de rios e bosques espessos, aquelles com infinitas entradas e saídas; estes sem entrada nem saida alguma, onde não é possivel cercar, nem adiar, nem seguir, nem ainda vêr ao inimigo, estando elle no mesmo tempo debaixo da trincheira das arvores apontando e empregando as suas frechas. E porque este modo de guerra volante e invisivel (frisei) não tivesse o estorvo natural da casa, mulheres e filhos, a primeira coisa que fizeram os nheengaibas, tanto que se resolveram á guerra com os portuguezes, foi desfazer, e como desatar as povoações em que viviam, dividindo as casas pela terra dentro a grandes distancias, para que em qualquer perigo podesse uma avisar ás outras, e nunca ser ãccommetidos juntos. Desta sorte ficaram habitando toda a ilha, sem habitarem nenhuma parte dela (grifei), servindo-lhes porém em todas, os bosques de muro, os rios de fosso, as casas de atalaya, e cada nheengaiba de sentinella, e as suas trombetas de rebate”. Tudo isto, para quem conhece a região, corresponde extamente o cenário ainda hoje muito complicado.
Esta parte da carta diz respeito o que tinham visto os padres João de Souto Maior e Salvador do Valle. Última tentativa de desembarque de tropa. Sabem os sertanistas que raramente índios atacam durante a noite, mas foi justamente isto que os nheengaíbas fizeram supreendendo os portugueses enquanto dormiam. Em meio a gritos e flechadas no escuro, Souto Maior levanta-se e acende um candeeiro o que fez os atacantes recuarem para o mato. Gemem e agonizam os feridos e ainda na refrega a tropa pega um nheengaíba ao qual o padre entrega o crucifixo que levava ao peito e manda que o soltem. O índio desapareceu na escuridão. Voltou a calma e nos meses que esperaram até a estação das chuvas não se viu mais vestígios de nheegaíbas.
Assim ficaram as coisas no Pará até 1658, quando chegou o governador Pedro de Mello com notícia de guerra com a Holanda. Mais uma vez o velho fantasma nheengaiba reapareceu. Segundo Vieira, os índios em questão eram tão amigos dos “hereges” a ponto do comércio entre eles ameaçar a segurança do Pará. Pois “todos os annos carregam de peixe boi mais de vinte navios de Hollanda. E entendendo as pessoas do governo do Pará, que unindo-se os hollandezes com os nheengaibas, seriam uns e outros senhores destas capitanias, sem haver forças no Estado (ainda que se ajuntassem todas) para lhes resistir, mandaram uma pessoa particular ao governador, em que lhe pediam soccorro e licença, para logo com o maior poder que fosse possivel, entrarem pelas terras dos nheengaibas, antes que com a união dos hollandezes não tivesse remedio esta pervenção, e como cria se perdesse de todo o Estado. Resoluta a necessidade e justificação da guerra, por voto de todas as pessoas ecclesiasticas e seculares, com quem vossa magestade a manda consultar, foi de parecer o padre Antonio Vieira, que em quanto a guerra se ficava prevenindo em todo o segredo, para maior justificação, e ainda justiça dela, se offerecesse primeiro a paz aos nheengaibas, sem soldados nem estrondo de armas que a fizessem suspeitosa, como em tempo de André Vidal tinha sucedido. E porque os meios desta proposição da paz pareciam igualmente arriscados, pelo conceito que se tinha da fereza da gente, tomou á sua conta o mesmo padre ser o mediator dela...”

Escolheu o padre Vieira o dia de Natal do mesmo ano e mandou dois “embaixadores” com a “carta-patente” a todas nações nheengaibas. A mensagem assegurava, “que por beneficio da nova lei de vossa magestade [1655], que elle [Vieira] fora procurar ao reino, se tinham já acabado para sempre os cap tiveiros injustos, e todos os outros aggravos que lhes faziam os portuguezes; e que em confiança desta sua palavra e promessa ficava esperando por elles, ou por recado seu, para ir as suas terras, e que em tudo o mais dessem credito ao que em seu nome lhes diriam os portadores daquelle papel.” (grifei).
Fica-se sabendo que do convento dos padres partiram os “embaixadores, que tambem eram de nação nheengaibas, e partiram como quem ia ao sacrificio, (tanto era o horror que tinham concebido da fereza daquellas naçoes, até os de seu proprio sangue) e assim se despediram, dizendo que se até o fim da lua seguinte não tornassem, os tivessemos pormortos ou captivos. Cresceu e minguou a lua aprasada, e entrou outra de novo, e já antes deste termo tinham prophetisado o mau successo todos os homens antigos e experimentados desta conquista, que nunca prometteram bom effeito a esta embaixada; mas provou Deus que valem pouco os discursos humanos, onde a obra é de sua providencia. Em dia de cinza [a Quaresma de 1659], quando já se não esperava, entraram pelo collegio da companhia os dois embaixadores, vivos e mui contentes, trazendo comsigo sete principaes nheengaibas, acompanhados de muitos outros indios das mesmas nações”.
Grande teatro missionário: “Foram recebidos com as demonstrações de alegria e applauso que se devia a taes hospedes, os quaes depois de um comprido arrasoado, em que desculpavam a continuação da guerra passada, lançando toda a culpa, como era verdade, á pouca fé e razão que lhes tinham guardado os portuguezes, concluiram dizendo assim : «mas depois que vimos em nossas terras o papel do padre grande, de que já nos tinha chegado fama [...]; posto que não entendemos o que dizia o dito papel, mais que pela relação destes nossos parentes, logo no mesmo ponto lhe dêmos tão inteiro credito (grifei), que esquecidos totalmente de todos os eggravos dos portuguezes, nos vimos aqui metter entre suas mãos, e as bocas das suas peças de artilhem; sabendo de certo, que debaixo da mão dos padres, de quem já de boje adiante nos chamamos filhos, não haverá quem nos faça mal...”

A historiografia e a ficção ficaram mais vizinhas na arte e engenho barroco. O padre diz que ele queria partir imediatamente às ilhas, “mas responderam com cortezia não esperada, que elles até áquelle tempo viviam como animaes do mato debaixo das arvores; que lhes dessemos licença para que logo fossem descer uma aldêã para a beira do rio, e que depois que tivessem edificado casa e egreja, em que receber ao padre, então o viriam buscar muitos mais em numero, para que fosse acompanhado como convinha, signalando nomeadamente, que seria para o S. João”.
No prazo combinado, voltaram os nheegaíbas “ás aldéas do Pará cinco dias antes da festa de S. João com dezesete canoas, que com treze da nação dos combocas, que tambem são da mesma ilha, faziam numero de trinta, e nellas outros tantos principaes, acompanhados de tanta e boa gente, que a fortaleza e cidade se poe secretamente em armas (frisei)”.

O padre ainda não foi desta vez, por estar enfermo. Porém, no dia 16 de agosto de 1659, estava descendo da aldeia do Comutá [Cametá] rumo ao nada? Não pode ser, tinha guia a bordo para levar ao destino. Por alguma razão Vieira não menciona este importante detalhe que só pode apontar àquele mensageiros anônimos que tinham iniciado o contato. Eram doze canoas grandes “acompanhado dos principaes de todas as nações cristãs” [tupinambás] e seis portugueses com o sargento-mor da praça. Ao quinto dia (21/8) entraram pelo “rio dos Mapuaezes” [Mapuá, município de Breves], a nação dos nheengaibas que tinha prometido receber os padres. Fica claro neste trecho a existência de piloto e guia conhecedor da viagem, que ficaram ocultos no texto. Exemplo de que a investigação de hoje não pode se confinar às viseiras de ontem.

Duas léguas (12,5 km) antes do porto, sairam os caciques anfitriões ao encontro dos dois padres numa grande canoa enfeitada de penas de aves de diversas cores, tocavam trombetas e levantavam pocemas (gritos de alegria e saudação), juntando vozes a espaços, ”é a maior demonstração de festa entre elles; com que tambem de todas as nossas se lhes respondia”.
Detalhes importantes, posto que se não os tivesse presenciado, ficaria mais admirável a imaginação do padre. Ele prossegue para dizer que os anfitriões entraram na canoa dos padres e “a primeira coisa que fizeram foi presentar ao padre Antonio Vieira a imagem do Santo Christo do padre João de Sotto Mayor, que havia quatro annos tinham em seu poder”. Em Belém corria boato de que os gentios a tinham feito em pedaços. Ou por ser de metal a tinham usado com fim utilitário. Esta carta na corte não parece que tenha tido o efeito desejado, nem faz maior menção entre estudiosos de Antônio Vieira.

Continua o relato: “Logo disseram que desde o principio daquella lua estiveram os principaes de todas as nações, esperando pelos padres naquelle logar, mas que vendo que não chegavam ao tempo promettido, nem muitos dias depois, resolveram que o padre grande devia de ser morto, e que com esta resolução se tinham despedido deixando porém assentado antes, que dalli a quatorze dias se ajuntariam outra vez todos em suas canoas, para irem ao Pará saber o que passava; e se fosse morto o padre chorarem sobre a sua sepultura, pois já todos o reconheciam por pai”.

Os tais bárbaros falantes da língua ruim não paravam de “falar” conforme o discurso barroco que o padre coloca na boca do índio para impressionar a católica viúva de Dom João IV, regente da menoridade do filho Afonso VI: “Chegados emfim a povoação, desembarcaram os padres com os portuguezes, e principaes christilos [tupinambás], e os nheengaibas naturaes os levaram á egreja que tinham feito de palma, ao uso da terra, mas muito limpa, e concertada, á qual logo se dedicou a sagrada imagem, com o nome da egreja do Santo Christo, e se disse o Te Deum laudamus em acção de graças. Da egreja a poucos passos trouxeram os padres para a casa que lhe tinham preparado, a qual estava muito bem traçada com seu corredor, e cubiculos, e fechada toda em roda com uma só porta, emfim, com toda a clausura que costumam guardar os missionarios entre os indios”.

Vieira não falou em intérpretes naquela babel. Todavia a acreditar em tudo, seria preciso adivinhar a mão invísível daqueles nheengaíbas cativos versados já na língua geral pelos padres de Murtigura, a fazer ponte verbal entre as margens opostas do Rio Pará velho de guerra desde os começos. “Mandou-se logo recado ás nações, que tardaram em vir, mais ou menos tempo, conforme a distancia; mas em quanto não chegaram as mais visinhas, que foram cinco dias, não estava o demonio ocioso introduzindo nos animos dos indios, e ainda dos portuguezes, ao principio por meio de certos agouros (grifei), e depois pela consideração do perigo em que estavam, se os nheengaibas faltassem á fé promettida, taes desconfianças, suspeitas, e temores, que faltou pouco para não largarem a empreza, e ficar perdida, e desesperada para sempre”.
Nesta altura, estavam pelo dia 26 de agosto. Aí o Diabo compareceu ao palco de Mapuá, provavelmente por lembrança da noite de São Bartolomeu, de 23 para 24 de agosto de 1572, com o massacre dos protestantes pelos católicos na França debitado às costa largas do demônio. O folclore paraense transformou esta tragédia da velha Europa cristã na ambígua lenda marajoara do Berto (diminutivo de Bartolomeu), como um dos vários apelidos do Diabo. No dia 24 de agosto caboco evita todo tipo de trabalho com risco de acidente, sobretudo, viagens e serviços na floresta. Em compensação, arranjou folga no serviço e utilidade para o Berto fazendo-o mijar, de touça em touça, de açaizeiro a fim do açaí pretejar e ficar bom para a safra. Gente tola na contra-cultura colonial, estamos vendo...
A firmeza dos padres, porém, fez a tropa bisonha e os “índios cristãos” acalmarem-se: “A resolução foi dizer o padre Antonio Vieira aos cabos, que lhe pareciam bem as suas razões, e que conforme a ellas se fossem embora todos, que elle só ficaria com seu companheiro, pois só a estes esperavam os nheengaibas, e só com elles haviam de tratar. Mas no dia seguinte [27 de Agosto, grifo] começou a entrar pelo rio em suas canoas a nação dos mamayanazes, de quem havia maior receio por sua fereza; e foram taes as demonstrações de festa, de confianças, e de verdadeira paz, que nesta gente se viram, que as suspeitas e temores dos nossos se foram desfazendo, e logo os rostos, e os animos, e as mesmas razões, e discursos se vestiram de differentes cores.

Através de intérpretes, que não menciona, Vieira declarou aos caciques a obrigação de vassalos era obedecer às ordens d'El-Rei e ficar sujeitos às leis, para “ter paz perpetua e inviolavel com todos os vassallos do mesmo senhor, sendo amigos de todos seus amigos, e inimigos de todos seus inimigos; para que nesta forma gosassem livre e seguramente de todos os bens, commodidades, e privilegios, que pela ultima lei do anno de mil seiscentos cincoenta e cinco eram concedidos por sua magestade aos in- dios deste Estado”.

Todos concordaram, talvez como judeus cristianizados a pulso, da boca para fora. Mas, “só um principal chamado Piyé, o mais entendido de todos, disse que não queria prometter aquillo. E como ficassem os circumstantes suspensos na differenca não esperada desta resposta, continuou dizendo, que as perguntas e as praticas que o padre lhes fazia, que as fizesse aos portuguezes, e não a elles; porque elles sempre foram fieis a el-rei, e sempre o reconheceram, por seu senhor desde o principio desta conquista, e sempre foram amigos, e servidores dos portuguezes; e que se esta amisade, e obediencia se quebrou, e interrompeu, fora por parte dos portuguezes, e não pela sua: assim que os portuguezes eram os que agora haviam de fazer, ou refazer as suas promessas, pois as tinham quebrado tantas vezes, e não elle, e os seus, que sempre as guardaram. Foi festejada a razão do barbaro, e agradecido o termo com que qualificava sua fidelidade“.

“Por fim, postos todos de joelhos, disseram os padres o Te Deum laudamus, e saindo da egreja para uma praça larga, tomaram os principaes christãos os seus arcos, e frechas, que tinham deixado fora, e para demonstração publica do que dentro da egreja se tinha feito, os portuguezes'tiravam as balas dos arcabuzes, e as lançavam no rio, e disparavam sem bala; e logo uns, e outros principaes quebravam as frechas, e tiravam com os pedaços ao mesmo rio, cumprindo-se aqui a letra: Arcum conteret, et confringtt arma. Tudo isto se fazia ao som de trombetas, buzinas, tambores e outros instrumentos, acompanhados de um grito continuo de infinitas vozes, com que toda aquella multidão de gentes declarava sua alegria; entendendo-se este geral conceito em todas, posto que eram de mui differentes linguas”.
Do terreiro que Vieira chamava praça foram todos juntos ao barracão dos padres, e ali foi feito ata, “que assignaram [sic] os mesmos principaes; estimando muito, como se lhes declarou, que os seus nomes houvessem de chegar a presença de vossa magestade, em cujo nome se lhes passaram logo cartas, para em qualquer parte e tempo serem conhecidos por vassallos. Na tarde do mesmo dia deu o padre seu presente a cada um dos principaes, como elles o tinham trazido, conforme o costume destas terras, que a nós é sempre mais custoso que a elles. Os actos desta solemnidade que se fizeram, foram tres, por não ser possivel ajuntarem-se todos no mesmo dia ; e os dias que alli se detiveram os padres, que foram quatorze, se passaram todos, de dia em receber e ouvir os hospedes, e de noite em continuos bailes, assim das nossas nações como das suas, que como diferentes nas vozes, nos modos, nos instrumentos e harmonia, tinham muito que vêr e que ouvir. Rematou-se este triumpho da fé, com se arvorar no mesmo logar o estandarte della, uma formosissima cruz, na qual não quizeram os padres que tocasse indio algum de menor qualidade, e assim foram cincoenta e tres principaes, os que a tomaram aos hombros, e a levantaram com grande festa e alegria, assim dos christãos como dos gentios, e de todos foi adorada”.

“As nações de differentes linguas que aqui se introduziram, foram os mamayanás, os aroans e os anayas, debaixo dos quaes se comprehendem mapuás, paucacás, guajarás, pixipixis e outros. O numero de almas não se póde dizer com certeza; os que menos o sabem, dizem que serão quarenta mil, entre os quaes tambem entrou um principal dos tricujús, que é provincia a parte na terra firme do rio das Almazonas, defronte da ilha dos nheengaibas, e é fama que os excedem muito em numero, e que uns e outros fazem mais de cem mil almas. Deixou o padre assentado com estes indios, que no inverno se saissem dos matos, e fizessem suas casas sobre os rios, para que no verão seguinte os podesse ir vêr todos a suas terras, e deixar alguns padres entre elles, que os comecem a doutrinar; e com estas esperanças se despediu.....”.
Vieira não sabia que no ano seguinte (1661) seria mandado embora, com truculência, e chegado a Portugal começaria sua queda diante da Inquisição. Esta carta foi o crepúsculo da missão do payaçu. Conta à regente Dona Luísa de Gusmão, como canto de cisne, que “o fructo que colheram este anno na inculta seara do Maranhão os missionarios de vossa magestade, e estes os augmentos da fé e da egreja, que conseguiram com seus trabalhos, não sendo de menor consideração e consequencia, as utilidades temporaraes e politicas, que por este meio accresceram á coroa e estados de vossa magestade, porque os que consideram a felicidade desta empreza, não só com os olhos no céu, senão tambem na terra, tem por certo que neste dia se acabou de conquistar o Estado do Maranhão (grifei), porque com os nheengaibas por inimigos seria o Pará de qualquer nação estrangeira que se confederasse com elles; e com os nheengaibas por vassallos e por amigos, fica o Pará seguro, e impenetravel a todo o poder estranho” [...]. Maranhão 11 de fevereiro de 1660 / Antonio Vieira.






3

"os homens constroem o passado de que necessitam e que lhes convém, o que torna bastante tênue a divisória entre historiografia e ficção - as províncias são limítrofes".
Décio Freitas / A Miserável Revolução das Classes Infames

a virada histórica das classes infames


Breves reflexões sobre uma controversa Pax entre brancos e pardos, há três séculos e meio. Vislumbra-se a fresta da memória sobre a mina escura do trabalho escravo, que se transforma em facho de luz para o caminho da liberdade. Oras pela ficção política do visionionário, oras pela revolta do lutador na perspectiva do avenir. Este futuro será melhor ou pior, dependendo da escolha que se poderá fazer no presente. Onde desemboca o passado do índio e do negro escondido no porão do palacete, na senzala à ilharga da casa-grande ou no rancho de retiro da fazenda; escondido debaixo da pirâmide social em cada centímetro quadrado do mapa regional. A suportar sobre as costas como Atlas desterrado o peso da civilização. Um quadro que Portinari pintaria talvez, se estivesse entre nós agora; figuraria a ressurreição das “classes infames” miseravelmente marginalizadas, dizimadas e esquecidas depois da anistia de 1840.

Iníqua pax da Cabanagem, transformada em manifestações para-folclóricas sobre esquecimento da pira de 40 mil mortos numa triste população amazônica de 100 mil almas atormentadas, de parte a parte. Horroroso rosário de cabeças cortadas e orelhas secas, decepadas. Pagamento da fingida rendição de 15 de agosto. Com que a falsificação da história do povo brasileiro na Amazônia pretendeu sonegar os feitos paraenses de 14 de Abril, em Belém, e 28 de Maio de 1823, na muito valorosa Muaná, datas magnas do Pará velho de guerra, no século XIX.

Rosário de genocídios, “guerras justas” e “pazes” quebradas repeditas vezes. Como o protesto do valente “nheengaíba” em Mapuá. Não importa, afinal, se o índio disse ou não disse o que o padre grande escreveu no papel que venceu a censura do tempo e a infâmia do silêncio. Nem mesmo se houve ou não houve o encontro do rio Mapuá. Agora vale o que está dito no discurso concreto da Cabanagem pela simples, porém genial, arquitetura cabana de Oscar Niemeyer, no memorial do Entroncamento do passado e futuro de Belém do Grão Pará. O canto aceso do carimbó da “criaturada grande de Dalcídio” sobre a merencória opereta da belle époque. Tal é a marcha inexorável da história do futuro da dignidade da pessoa humana.
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José Maria Varella Pereira, Belém do Pará, 27/VIII/2009
voluntário do Museu do Marajó e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP).

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