sábado, 28 de agosto de 2010

diálogo entre índios e cabocos para construir o futuro ecocultural

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não é verdade que a obra humana está terminada - diz o poeta pai da Negritude, Aimé Cesaire; da ilha da Martinica para o mundo - de fato, a História vem apenas de começar. Na Amazônia atlântica está a começar agora um novo capítulo da história regional. Há cinco mil anos, a partir do alto Rio Negro em direção ao nascente até as ilhas do mar do Caribe formou-se o chamado "circum Caribe" que refluiu das Antilhas para oeste da Terra-Firme (país do Cruzeiro do Sul, o Arapari) em círculos concêntricos, chegou aos contrafortes dos Andes, ocupou o Pantanal e foi findar pelas bordas do Prata e do Paraná.

Dialeticamente, outra onda humana oposta descia pelo velho caminho do Peru - o Peabiru -; um complexo processo antropofágico de guerra e paz que envolveu os chamados Tapuias (Jês) e os Kalina ou Galibi pelo norte (nomes genéricos para muitos povos, línguas e culturas diferentes).

A Cultura Marajoara até nossos dias é resultado desse antigo movimento demográfico. O "homem tirado do mato" (kaa bok, caboco) é o índio caçado para ser escravo, ele é o primeiro "negro da terra" precursor do negro da Guiné. Os primeiros 36 índios da América do Sul sequestrados pelos europeus e levados como escravos, foram arrancados da ilha do Marajó, em 1500, pelo espanhol Vicente Pinzón.

Por isto, no início da era pós-colonial ou pós-globalização, que é o século 21; indígenas, quilombolas e cabocos cuidando para cultivar suas distintas identidades e diferenças, precisam também dialogar e coordenar suas ações face à sociedade nacional e mundial envolventes.

A seguir, um exemplo da alteridade de pensamento e visão de vida duma região ecocultural diferenciada da comunidade brasileira, o Alto Rio Negro. A qual se acha, provavelmente, à origem de diversas etnias e culturas do "circum Caribe", dentre estas a Cultura Marajoara (primeira sociedade complexa da Amazônia pré-colombiana, tipo Cacicado). Interessante remeter o leitor para o texto do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia histórica da ilha grande de Joanes, ou Marajó" (1783) [buscar na web versão eletrônica],quando o autor se refere à teoria da origem dos rios e igarapés na ilha do Marajó, segundo um índio do rio Arari. Comparar a explicação da abertura do rio pelas muitas cobras grandes que existiam no interior da ilha e a cosmovisão do Rio Negro.
(por José Varella)


Povo Kotiria: O ciclo da vida.

Tendo em mente os princípios cosmológicos sintetizados no item anterior, podemos começar a perceber como alguns processos vitais são elaborados em termos cosmológicos e como se relacionam a práticas rituais associadas ao ciclo de vida.

A digestão, evacuação, decomposição e morte envolvem um fluxo passivo do alto para o baixo, de rio acima para rio abaixo, do Oeste para o Leste. A vida em si é um movimento, às vezes uma luta, de acordo com esse fluxo: as plantas crescem em direção ao sol e as pessoas devem crescer para cima enquanto amadurecem. O Sol, ou Yeba Hakü (na língua barasana), o “Pai do Universo”, fonte de luz e da vida, move-se constantemente contra a corrente, subindo os rios da terra do Leste para o Oeste durante o dia e subindo o rio do “mundo inferior” durante a noite, para aparecer de novo no Leste. O ancestral-Anaconda que trouxe a humanidade para o mundo também viajou como o Sol, no sentido Leste para o Oeste, parando quando alcançou o meio do universo. Esse mesmo movimento de Leste a Oeste foi também uma ascensão da água para a terra.

O ancestal-Anaconda, um ser aquático, é o próprio rio no qual ele viajou, e os seres em seu interior somente assumiram a forma humana quando emergiram na terra firme; antes disso, eram “gente peixe”, espíritos na forma de ornamentos de penas. Os animais são chamados wai-bükürã, “peixes maduros”; e, logicamente, entre eles estão os seres humanos, seres que estão a meio-caminho entre os “peixes-espíritos” que eram antes e os “espíritos-pássaros” que se tornarão.

A história do ancestral-Anaconda é uma narrativa sagrada sobre os primórdios e, provavelmente, uma versão das migrações históricas dos povos Tukano. Também pode ser entendida como uma história sobre a ecologia, sobre as migrações anuais rio acima de peixes amazônicos que vêm desovar nas cabeceiras; e uma história sobre a reprodução humana, que também envolve uma penetração ascendente, no sentido “Leste-Oeste”, rumo a uma “porta da água”, num fluxo ascendente de sêmen, e uma passagem do mundo aquático do ventre para o mundo seco da existência humana na terra. Não é de se admirar então que “nascer” é hoe-hea (em barasana), que significa “atravessar rumo a um nível mais alto”. Mas o nascimento também envolve um movimento de descida pelo canal do corpo feminino – cosmologicamente um movimento do Oeste para o Leste e, em termos sociais, um movimento da mãe para o pai ou das mulheres para os homens.

Para entender esses movimentos, porém, é preciso começar pela morte. Alguns índios do Uaupés, os Kubeo em particular, encenam rituais elaborados de luto em que dançarinos com máscaras pintadas e feitas de casca de árvore se tornam peixes, animais, e outros seres da floresta para dar boas-vindas à alma do morto no mundo dos espíritos. Mas o enterro tukano em si é um evento simples: a cova é o chão da maloca e o caixão uma canoa cortada ao meio. Esse sepultamento simples é o prelúdio para um futuro nascimento.

Os tukano compartilham uma noção de reencarnação segundo a qual, quando uma pessoa morre, um aspecto de sua alma volta para a “casa de transformação”, local de origem do grupo. Depois, a alma volta ao mundo dos vivos encarnada em um recém-nascido que recebe o seu nome. As pessoas recebem o nome de um parente recentemente falecido do lado paterno, o avô paterno para um menino ou a avó paterna para uma menina. Cada grupo possui um conjunto limitado de nomes pessoais que vão sendo retransmitidos a cada geração. O aspecto visível dessas “almas-nomes” são os cocares de penas usados pelos dançarinos, que também são enterrados com os mortos. O rio do “mundo inferior” é descrito como repleto de ornamentos, assim como na história de origem os espíritos dentro da canoa-Anaconda tiveram a forma de ornamentos de dança.

Sepultadas em canoas, as almas dos mortos caem para o rio do “mundo inferior”. De lá, são levadas pela correnteza do rio subterrâneo para o Oeste e às regiões rio acima deste mundo. As mulheres não dão à luz na maloca, mas numa roça no interior da floresta, rio acima e atrás da casa – também ao Oeste. O recém-nascido é primeiramente lavado no rio e depois levado para dentro da maloca pela porta traseira, a “porta das mulheres”. Confinado dentro da casa por cerca de uma semana com seu pai e mãe, ele é então banhado de novo no rio e recebe um nome. Assim, em termos csmoológicos, os bebês de fato vêm das mulheres, da água, do Oeste.

Clique aqui para conhecer mais o Povo Kotiria.


Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kotiria/1610


Publicado em Povos Indígenas, Povos do Rio Negro, Rio Negro
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