quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

a singular história do Museu do Marajó

a minha história do Museu do Marajó não é necessariamente a "verdadeira" e nem idêntica a dos outros. "Assim é se lhe parece"... Acho, em primeiro lugar, que Marajó é o museu! O que se vê no acervo Giovanni Gallo é a ponta da flecha a indicar algo que está oculto (patrimônio imaterial) com a longa história da invenção, destruição, ruína e reconstrução da Cultura Marajoara desde o barro dos começos do mundo das águas.

o que se não pode jamais é descolar o nome e a tragédia do fundador do Museu do Marajó da odisséia coletiva do Povo Marajoara. O jesuíta daltônico nos ensinou, mesmo sem ele ler o ciclo Extremo-Norte (na lista de obras não-recomendáveis aos católicos segundo catecismo da Arquidiocese de Belém à época de dom Mário de Miranda Vilas-Boas), a ver direito aquilo outro que o romanceiro de Dalcídio Jurandir mostra ao país inteiro e por isto merecido o prêmio "Machado de Assis" (1972), por acaso no ano de fundação do Museu, em Santa Cruz do Arari; porém carecia vivenciar o dia a dia da gente marajoara meio século depois da lavra literária de "Chove nos campos de Cachoeira" e "Marajó", na antiga vila de pescadores de Salvaterra.

O padre Gallo não fez um museu para elite letrada se admirar das habilidades dos índios e cabocos. Ele viveu com estes últimos como um pescador panema entre camaradas da pesca artesanal lacustre. Então, inventou um museu para ser espelho do modo de vida daquela gente, a fim de que ela se enxergasse na arte primeva de seus antepassados. Seria este talvez o recado escrito e desenhado nos "motivos ornamentais" da cerâmica marajoara. A história daquele museu é a ousadia de um bravo a remar contra maré quando ele podia ir de vento em popa por outros mares... "Vá embora!" "Por que não vai embora?"... Era o conselho mais certo para se desembaraçar do intruso. Só de teimoso o padre se deixou implodir até o fim. Depois morreu e se fez enterrar na ilharga do museu que lhe serviu de mausoléu como a um faraó visionário. Dizem que já lhe foi visitar na tumba um estranho com estória de que o padre era, paresque, reencarnação de um grande cacique marajoara que fez império naquela ilha...

Eu não duvido. Pois, não longe dali andou o padre grande dos índios, Antonio Vieira, a ressuscitar o falecido dom João IV (1656) que por sua vez fora ressurreição de dom Sebastião, para efeito da Restauração do reino de Portugal. Mutatis mutantis, se para restaurar a Cultura Marajoara for preciso; haja então a ressurreição do Gallo, Galinho das crianças do Arari... Não é verdade que Dalcídio lhe mandou recado do Rio de Janeiro, em correspondência com Maria de Belém Menezes? Dizendo o romancista da Amazônia: "A foto das crianças de Jenipapo me comove, são meus netos marajoaras, alegres apesar da miséria..."

É muito interessante visitar o Museu do Marajó www.museudomarajo.com.br em Cachoeira do Arari. Mas será melhor o viajante de primeira viagem visitar antes a literatura da "ilha" grande do Marajó (por exemplo, www.dalcidiojurandir.com.br ) e se iniciar nos antigos mistérios da Cultura Marajoara ( www.museu-goeldi.br e www.marajoara.com ). Há que escolher qual Marajó quer conhecer primeiro, o dos campos alagados ou das "ilhas" (isto é, das florestas de várzea)... O Marajó da chuva (inverno) ou do verão (estio). São paisagens culturais distintas todavia da mesma ditadura da Água. No verão o turista pode correr de jipe pelo leito seco e poerento do lago Arari, com poucos dias de chuva as margens do igarapé Por-Enquanto ficam mais lindas e atapetadas de flores da estação chuvosa do que os jardins de Maria Antonieta, em Versalhes (França).

O livro-reportagem de Giovanni Gallo, "Marajó, a ditadura da água" é curso superior completo de antropologia do caboco. Mas, espera lá! Do caboco do Arari, melhor dizendo, do caboco do lago Arari que é mundo à parte... Marajó é mundo grande e diverso, a complexidade em forma de geografia física e humana. A tal "ilha" do Marajó são ilhas e o "arquipélago" é apenas metade do território marajoara que passa pela terra-firme adentro através da microrregião Portel. Onde se encontra (pasmem!) uma formidável floresta nacional, a Flona Caxiuanã que auberga a Estação Científica Ferreira Penna, do Museu Paraense Emílio Goeldi.

eu não sei porque tenho mania de rejuntar as coisas, como um carapina calafeta juntas de casco de embarcação. Não costumo deixar nada de fora duma boa conversa de compadres e vou logo emendando enredo como quem tece rede de pescador. Se o IBGE garante que Marajó é mesorregião do tamanho de um país, como o vizinho Suriname, por exemplo; por que a gente vai reprizar aquela velha estória rasa de "ilha" da Barataria e museuzinho mofino e fechado que finda sendo paroquial pelas portas da primeira rua da pequena cidade de Cachoeira? O padre Gallo tansformou "cacos de índio" em modelos para artesanato, uma usina falida da extração de verbas públicas sob promessa de óleo vegetal tirado de incentivos fiscais da velha Sudam para virar sede de um Museu exemplar... Alguém falou em sustentabilidade econômica? O Museu do Gallo apesar dos pesares já deu mais emprego e renda para o povo de Cachoeira do que a lendária Oleica comprada e indenizada com dinheiro do dito museu. Ou não? Cadê o meu contador de estória?

Por que não podemos nós ir além da beira-rio para os campos-gerais? Que nem o menino Alfredo, na cidade grande, a correr montado no cavalo do pensamento em busca de Andreza em fuga pelos campos carregados de solidão e chuva montando búfalo na garupa do vaqueiro Edmundo... Mundo, mundo... Vasto mundo. Ninguém se lembra mais da velha freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Rio Arari (1747), então a exposição Giovanni Gallo é ótima, é fundamental, mas ela não contempla nem mesmo toda história do município de Cachoeira do Arari.

E a história de Cachoeira é a história da colonização do Rio Arari a partir do primeiro curral de gado na ilha do Marajó (1680). A conquista da "ilha" do Marajó é de 1623, tomada de Gurupá (aliás Mariocai) aos holandeses e estes já praticavam escambo com as populações tradicionais do Amapá, Marajó e Xingu desde fins do século XVI... É muita história que falta contador para contar todos os contos. Então, por que se empresta tanta fama ao padre Gallo e ao escritor Dalcídio se eles abominavam o culto da personalidade e queriam falar do povo, da criaturada grande; e nada mais?

tenho pra mim, com testemunho do criador do Museu do Marajó (cf. Giovanni Gallo, "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara"), que o caboco Vadiquinho merece estátua na praça principal de Santa Cruz do Arari devido à feliz provocação feita ao pároco com aquele misterioso pacote de "coisas que não prestam" (fragmentos de cerâmica deixados ao léu por saqueadores de sítios arqueológicos). Dar todo crédito à inventiva do Gallo é salvar apenas metade da história do Museu do Marajó. Mas ele deixou claro que o personagem principal é o homem marajoara... Sem este homem desamparado o ilustre missionário dos imigrantes da Suíça poderia até ter sido carmelengo do Papa, mas depois de morto seria realmente finado e não estaria vivinho da silva na memória dos cabocos, que nem os seres encantados do mundo invisível.

Certo que o filho de Vadico (Osvaldo) não havia a educação patrimonial que hoje ainda falta àquelas pobres crianças do Alto Anajás, cuja família desamparada coleta água da chuva em vasos funerários de seus ancestrais, datados de mais de mil anos, como se vê em fotos publicadas pelo professor Nigel Smith, da Universidade da Flórica (EUA). O "savoir faire" do caboco é exaltado no Museu do Marajó, mas sua ignorância viaja em imagens cruéis pela rede mundial de computadores. Acho que eu e o leitor temos mais que reagir para mudar essa história triste.

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