domingo, 22 de agosto de 2010

Para inventar o Dia da Consciência da Cultura Marajoara

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para Rodolpho Antonio Pereira, meu pai (in memoriam).

Apesar dos pesares, o ano passado de 2009 com o evento do Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir (10/01/1909-2009) e os mui desapercebidos 350 anos da iniciativa de paz do payaçu Antônio Vieira no rio dos Mapuás (27/08/1659-2009), atual Resex Mapuá no município de Breves; entre sete caciques “Nheengaíbas” [povos Anajás, Aruãs, Cambocas, Guaianás, Mamaianás e Pixi-Pixis] e o governo colonial do Maranhão e Grão-Pará; dá margem a uma singular reflexão sobre a paisagem cultural marajoara com ideia de um dia do Marajó que ora se adianta. De maneira que, do Oiapoque ao Chuí, o bravo povo saiba que a Civilização Brasileira começou num dia distante pela boca do rio Amazonas, idos entre os anos 400 e 500 (era cristã), enquanto no velho mundo a civilização greco-romana declinava.

Claro está que um Dia assim será atrativo turistico a valorizar mais o arquipélago do Marajó, do homem da resistência à invasão de seu modo de vida em suas ilhas ancestrais.

Isto agora, com as metas do Milênio (2015) a bater de frente com a crise da civilização industral, que poderá dizer? A data magna marajoara podia ser o dia que índios e brancos baixaram as armas e deram fim à guerra suja de expulsão de holandeses e britânicos, de 1623 a 1647. Conflito geral implicado à caça de escravos, que se alastrou a todos povos do delta-estuário por mais 12 anos além dos 24 anos da luta colonial entre católicos portugueses e protestantes estrangeiros.

Perdida a partida, os estrangeiros que atiçaram índios contra índios em protesto ao “testamento de Adão” bateram em retirada e deixaram os “selvagens” amigos ou inimigos ao deus-dará. A população das Ilhas era estimada em 50 mil habitantes (segunda metade do século XVII). No lado oposto, a Cidade do Pará e entorno, segundo Vieira; contava apenas com “80 habitantes, fora os padres, escravos e índios”. Era uma história maluca! Uns poucos colonos incapacitados a sobreviver no Trópico Úmido querendo guerra de extinção e cativeiro dos marajoaras, mas não podiam eles mesmos sustentar e vencer a guerra contra a cobiçada ilha invicta.

Então os coloniais contavam ainda mobilizar seus esgotados tupinambás de sempre, estes talvez já desenganados do empolgante mito que os trouxera de tão longe em busca da “Terra sem mal”, cujo porto do sol se acha na foz do Arari, no sítio Araquiçaua... Lugar mágico, pelo qual lutavam feito diabos; onde não existiria fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte. Todavia, pelo contrário a dura realidade da terra conquistada era de infinitos males!

Ou seja, a posse de Portugal na Amazônia, dentro das raias do tratado de Tordesilhas (1494-1750), perigava face a seus inimigos e dependia de 80 portugueses expatriados, alguns milhares de escravos indígenas muitos deles “resgatados” nas ilhas e índios aliados cansados da conquista do “rio das amazonas”, fadigas sem conta e epidemias devastadoras. No entanto, quando com mil riscos os jesuítas concluíram pazes com os temidos e odiados Nheengaíbas, longe do Grão-Pará lhes agradecer os expulsaram (1661), o Santo Ofício processou e aprisionou o Padre Antônio Vieira e o rei Afonso VI ao arrepio da lei de 1655 editada por seu pai doou a ilha do bravo Marajó a seu secretário de estado, fazendo dela capitania hereditária dos Barões de Joanes (1665).

Noves fora a teoria do milagre de Santo Antônio na tomada do fortim holandês de Mariocai, convertido em forte de Gurupá (1623) pelo endiabrado Bom Selvagem e a ruptura da “linha” de Tordesilhas com a formidável entrada de Pedro Teixeira e seus 1200 arcos e remos tupinambás de Belém a Quito (Equador, 1637-1639); não fosse a pacificação dos índios do arquipélago do Marajó a gente não estaria agora a falar de Amazônia brasileira. Portanto, a data de 27 de agosto bem podia ser decretada o Dia do Marajó.

Mas não é para menos o dia 28 de Maio – a verdadeira Data-Magna do Pará – , memória da proclamação de Muaná de 1823 em Adesão do Pará à Independência do Brasil. Entretanto, se dependesse exclusivamente de minha opinião, o grande dia do Marajó haveria de comemorar a data de 20 de novembro de 1756; quando sem heroísmo e gloria um anônimo (provavelmente, o fundador da freguesia de N.S. da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino da Silveira Frade) pela primeira na bibliografia registrou noticia certa sobre a ancestral Cultura Marajoara (cf. Nelson Papavero et al., “Notícia da Ilha Grande de Joannes...” (autor anônimo, anos 50 do séc. XVIII) in “O Novo Éden” – Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002, 2ª ed. p. 333):

“Na maior parte destas Ilhas tem assistido muito Gentio da Nação Aroam, Maruanum e Sacôra. Em muitas das ditas Ilhas se tem achado e se acha ainda muitas Pandas, Ingassabas (que é o mesmo que Cantaros ou Potes), tudo muito bem feito, a maior parte dellas que se tem achado é debaixo da terra. Também se tem achado dentro de algumas Pandas grandes ossos de gente e caveiras, d'onde se collige ser costume daquelles Indios serem sepultados daquella fórma.

“Em muitas das Ilhas que se tem descoberto, se tem achado muitos Pacovaes, mas nunca nenhum maior, que o que se descubrio em 20 de Novembro de 1756, o qual tem o comprimento de 200 braças e 30 de largo; e vários pés de Maniba e plantas de Ananazes...”

O autor da “Notícia” fala da colonização da Ilha 80 anos depois, aproximadamente, do primeiro curral de gado em Marajó (1680) enfrentar “o perigo dos índios bravios, desertores e escravos fugidos” que viviam nos centros do Marajó. É dizer, a resistência marajoara durou até cerca de 140 anos depois da fundação de Belém!

É dizer a data de 20 de Novembro, neste caso, retroage ao ano 400 com a invenção da Cultura Marajoara e projeta o futuro da paisagem cultural Belém-Marajó referente aos 400 anos da Capital do Pará. Cria consciência histórica sobre a construção do território amazônico. Mostra que apesar da pacificação das Ilhas em 1659 e da Capitania hereditária de 1665, Marajó se fechava à curiosidade externa: a fama de fereza dos Nheengaíbas e especialmente dos Aruãs no labirinto insular mantinha inimigos afastados... Cenas da segunda metade do século XVII descritas pelo Padre Antônio Vieira encantam o leitor, mas são uma fresta de fora para dentro. Com grandes dificuldades, o autor anônimo revela o interior da Ilha aos olhos do mundo. Base sobre a qual, em 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira com a “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó” dá pista para identificar na pessoa do Inspetor Geral Florentino da Silveira Frade o provável autor da primeira das duas “Notícias”.

A razão do anonimato se explica pelo conflito entre o Diretório de Pombal e a Companhia de Jesus. Aí a figura do sargento-mor Severino dos Santos, da Vila de Monforte, índio sacaca; entrevistado pelo sábio de Coimbra é reveladora do guia dos descobrimentos que fez no interior da ilha o dito Inspetor Geral. Severino se apresenta como descendente das mais velhas etnias marajoaras deslocadas dos centros da ilha para a costa oriental entre Soure e Ponta de Pedras diante da invasão dos Aruãs (entre 1300 e 1400). A história oral guardada na memória do velho índio em transe de se transformar em caboco civilizado é, portanto, o símbolo cabal da inclusão do passado ancestral marajoara na História, mediante as ditas notícias e a “Viagem Philosophica”.

Forte coincidência: a data do achado do teso Pacoval do rio Arari – o mais saqueado de todos sítios do patrimônio arqueológico da ilha do Marajó – e o 20 de Novembro da morte de Zumbi dos Palmares, Dia da Consciência Negra; também se poderá considerar irmãmente Dia da Consciência da Cultura Marajoara: dois acontecimentos separados no tempo e no espaço, porém unidos pela cultura nos dois lados da mesma moeda: o Colonialismo e a Escravidão, as duas faces da mesma ojeriza ao Outro.

A consciência da Cultura Marajoara será oportunidade para inclusão do Índio na História do Brasil como nunca dantes, do mesmo modo como a Consciência do Negro abre caminho na sociedade de classes contemporânea para ver o peso da diversidade cultural brasileira. Assim, a tímida virada marajoara de 2009 foi como a madrugada na preamar das águas grandes de rio e mar trazendo à tona o passado que jazia oculto ao fundo do nosso inconsciente coletivo. Se a Bahia de Jorge Amado já nos deu a negritude, o Pará do índio sutil Dalcídio Jurandir poderá fazer o Brasil mais brasileiro. Em Marajó, o “negro da terra” antecipou a escravidão na América do Sul, mas o negro africano se naturalizou e aprendeu a ser “índio”, como bracaranas cabanos também aprenderam a sobreviver e a inventar história sob o mais amplo sebastianismo ultramarino que já se viu no mundo.

Estuário de extraordinários acontecimentos cujas origens se perdem no mito da Primeira Noite do Mundo; o tempo arqueológico marajoara se esconde no símbolo do caroço de tucumã que o folclore amazônico conserva ou deve conservar na memória e no coração do povo. Numa retrospectiva rasa podia-se dizer que o despertar da consciência da gente começou pela obra de um escritor do povo, na transformação do mito em tempo de romance tangente à antropologia e à história por artes de ficção criativa.

Quando, em 1939, na vila de Salvaterra (antiga aldeia de índios Iona [“joanes”] ou Sakaka, depois Monforte, 1758) Dalcídio José Ramos Pereira, recém-saído do presídio São José [hoje centro de artesanato São José Liberto] onde ele estava preso com camaradas e ladrões de gado atrás das grades da cadeia por “crime” político contra o fascismo do Estado Novo. Ele assumiu nome literário de Dalcídio Jurandir e reescreveu “Chove nos campos de Cachoeira”, romance seminal do ciclo Extremo Norte e o romance “Marinatambalo” (publicado com título de “Marajó”), o primeiro romance sociológico brasileiro. Não, por acaso, da ilha de Marinatambalo (Marajó) o piloto castelhano de Cristóvão Colombo levou, em fins de janeiro de 1500, os primeiros “negros da terra” da América do Sul... O leitor está seguindo as oscilações do ritmo da nossa história?

O nome tupi “Jurandir” significa “trazido pela luz do céu”... Dalcídio provavelmente conhecia a lenda segundo a qual, há muito tempo, pajés sacacas viram uma estrela cair e explodir no lago Guajará. Os fragmentos da tal “estrela” são “pedras de raio” que deram machados mágicos. O Guajará é lago encantado onde pajés de sete fôlegos vão se iniciar e dali saiam seres encantados tais como o Boi Selado... A saga dalcidiana conecta Mito e História, Natureza e Cultura e por isto é portal para a consciência que se está em busca antes que o Marajó acabe.

No ano de 1972, o romancista da Bahia saúda seu amigo e camarada Dalcídio Jurandir no célebre discurso de entrega do Prêmio “Machado de Assis” – o primeiro para autor amazônida – chamando de “índio sútil” ao escritor marajoara. Nunca um cognome foi tão apropriado e a ocasião mais oportuna do que aquela no convívio dos imortais, com forte detalhe que o homenageado era filho de mulher negra descendente de escravos e o pai branco descendente de portugueses. A qualidade indígena do homenageado pela Academia Brasileira de Letras (ABL), então, vinha a calhar por conta de sua “Criaturada grande”, majoritariamente remanescente de ameríndios.

Forte coincidência, “Marinatambalo” [ilha do Marajó] foi, em 1500, antes do descobrimento do Brasil, o lugar donde o navegador Pinzon arrancou os primeiros 36 “negros da terra” (escravos índígenas) da América do Sul. Quer dizer, em Marajó, a história colonial começa de mal passo. Quando Marajó desencanta? Talvez quando a consciência transformar o mito em história... Porém, é preciso ter muito cuidado! Pois, ao se transformar a cultura marajoara em realidade desalmada pode ser que não reste mais nada à “Criaturada grande de Dalcídio”. E, portanto, os cegos de espírito não viram ainda que 1972, com a estupenda coincidência do reconhecimento nacional ao romance do “índio sutil” e invenção do nosso museu de Santa Cruz do Arari, pelo padre Giovanni Gallo; foi a virada histórica pacientemente esperada pela brava gente marajoara.

Intelectuais da província do Pará e da metrópole tupiniquim estão mal na parada! Chegamos ao fim da primeira década do século XXI e Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo já morreram. Desde 2003, o movimento da sociedade civil mandou mensagens de SOS ao Presidente da República e a resposta se fez presente com o Plano Marajó (2007) e o Território da Cidadania (2008), a Governadora Ana Júlia firmou carta-compromisso e um belo dia a cidade de Breves (município do acordo de paz de Mapuá) viu juntos Presidente da República e Governadora do Estado juntos pelo fim do apartheid das ilhas.

Agora é chegado o momento de uma reflexão na forma de proposta de escolha do “Dia de Consciência da Cultura Marajoara” a fim evidenciar o tempo e espaço do “maior arquipélago fluviomarinho do mundo”. Eu quero dizer logo que o melhor dia do Marajó a comemorar alguma coisa de bem, será aquele que os próprios marajoaras dispersos por 500 e tantas “ilhas” se derem conta da antiguidade de 1500 anos de nossa ancestral cultura. Tudo mais fica em segundo plano até final e total descolonização de todos Brasis.

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