quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Eu acuso a 'intelligentsia' tupiniquim!

-
Inegavelmente, o Presidente Lula e a Governadora Ana Júlia Carepa quebraram a rotina histórica de 350 anos de derrotas e humilhações do povo marajoara, desde a "pacificação" de Mapuá [Breves 1659] pelos Jesuítas, miseravelmente atraiçoada pelos colonos do Grão-Pará e o fraco rei Afonso VI de Portugal com a expulsão do Padre Antônio Vieira e seus companheiros (1661) para doação da ilha dos Nheengaíbas, invento da longínqua baronia de Joanes e capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1757). Mas, a verdade é que o forte contraste entre o imenso potencial desta região e a pobreza a que o neocolonialismo brasileiro a reduziu é tamanho que parece uma gota d'água no oceano tudo quanto já se fez a partir de 2003, a cabo de uma demanda popular que se pode, historicamente, situar na obra literária de Dalcídio Jurandir, desde a vila de Salvaterra, em 1939, com a reescrita definitiva do romance seminal "Chove nos campos de Cachoeira".

A Rússia e a China traduziram, por motivo ideológico, deste autor amazônico o romance proletário "Linha do Parque". Porém, com exceção da edição portuguesa de "Belém do Grão-Pará", o mundo exterior ignora solenemente o romancista da cobiçada Amazônia. É curioso que uma região que tanto interesse exerce sobre o mundo industrial não desperte atenção para a obra que fala, justamente, da "criaturada grande" (populações tradicionais amazônicas).

Ora, Dalcídio Jurandir teve o conjunto da obra reconhecida pela Academia Brasileira de Letras, com recebimento do Prêmio "Machado de Assis" de 1972: o primeiro para autor amazônida, o segundo apenas em 2010 para o filósofo paraense Benedito Nunes. São fatos isolados que, em conjunto, expressam um profundo sentimento de apartação entre o sul e o norte brasileiros. Marajó é mais do que um acidente geográfico na inconsciência nacional...

Quando a míngua de interesse acadêmico for superada, o país do Cruzeiro do Sul e o mundo inteiro há de ver que a invenção daquele incrível Museu do Marajó, na isolada Santa Cruz do Arari, é na prática o mesmo discurso memorial do romance dalcidiano por outros meios.

Por necessidade e acaso, Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo são "médiuns" de um povo zumbizado! Intérpretes de uma cultura arruinada sempre prestes a renascer das cínzas e dos "cacos de índio"... Mas, Dalcídio e Gallo já morreram: urge então ressuscitar outros Dalcídios e Gallos capazes de manter a chama da antiga cultura e despertar a resiliência da mesma gente que um dia, no passado distante, foi aprendiz de peixes e engenheiro do barro dos começos do mundo.

Segundo o naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, a primeira notícia sobre teso (sítio arqueológico de cerâmica marajoara)da ilha do Marajó foi dada por Florentino da Silveira Frade, fundador da freguesia de N.S. da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747); que teria achado o teso do Pacoval do Arari, no dia 20 de novembro de 1756.

Do saque e ruína do Pacoval e, por extensão, de toda cerâmica marajoara pré-colombiana falou o governador da Província do Pará, o Barão do Marajó; em sua obra clássica "As Regiões Amazônicas" quando informou das extrações feitas pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro e remessas para a Exposição Etnográfica de Chicago (EUA), cerca de 1870. Nesta época, o fundador do Museu Paraense [hoje Museu Paraense Emílio Goeldi], Ferreira Penna começava estudos pioneiros sobre a Cultura Marajoara e diversos arqueólogos norte-americanos voltavam seus olhares para a ilha do Marajó.

Em 1937, nascia o IPHAN com nítida opção pela história colonial em meio a uma polêmica com o Museu Nacional, que por sua vez priorizava a pesquisa pré-colombiana. Em tal contexto, a diretora Heloísa Alberto Torres estudou a Cultura Marajoara e visitou Chaves, na ilha do Marajó, concluindo por dizer que o Brasil negligencia seu mais significativo patrimônio arqueológico. Desde então nada de útil foi feito, exceto o trabalho dos arqueólogos norte-americanos com Betty Meggers e Anna Roosevelt em destaque.

A brasileira Denise Schaan, entretanto, por mérito próprio em cooperação internacional nacionalizou os estudos da cerâmica marajoara: com a publicação de sua obra de divulgação "Cultura Marajoara", editora Senac, São Paulo, 2010; produziu um libelo contra a omissão do sistema cultural brasileiro. Ninguém mais, notadamente as autoridades do Estado do Pará, podem alegar em juízo ignorar fatos científicos, políticos, econômicos e culturais apontados na obra citada. Pena que a população dos 16 municípios do Marajó continue à margem de sua própria história regional...

Que diriam os cabocos marajoaras -- remanescentes históricos dos antigos criadores da arte primeva amazônica na ilha do Marajó -- se eles, sendo minimamente alfabetizados, tivessem recebido a devida educação patrimonial que a ancestralidade da Cultura Marajoara exige para autodefesa da Amazônia brasileira por sua gente nativa?

Com certeza, os cabocos seriam os primeiros dentre todos brasileiros a gritar alto e forte ao mundo inteiro os direitos territoriais expressos na estrofe do Hino Paraense, que diz:... "Do Brasil, sentinela do Norte." ...

Somos algo em torno de um milhão de marajoaras. Todavia, para o IBGE não só o Marajó é uma mesorregião com três microrregiões físicas formadas por 16 municípios no total de 104 mil km² de território no Estado do Pará, sua população não chega a 500 mil habitantes. Mas, são muito mais os marajoaras que se identificam como tal espalhados no Brasil e no mundo, em maior concentração demográfica na área metropolitana de Belém, zona Macapá-Santana e comunidades emigrantes na Guiana francesa e Suriname.

O que nos identifica como "marajoaras"? Assim como há gaúchos, cariocas, sertanejos, caipiras, etc, no Brasil é a região cultural insular do delta-estuário amazônico que nos dá sentimento de pertencer a uma peculiar parte do País e do planeta.

É notável o fato histórico de que as ilhas do golfão marajoara opuseram tenaz resistência à invasão e colonização de suas terras tradicionais, desde o primeiro contato com os europeus, em fins de janeiro de 1500, quando o piloto de Cristóvão Colombo Vicente Pinzón atacou e capturou os primeiros 36 "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul, arrancados da ilha do Marajó. Para nós, começou assim, de mau passo, a história colonial. Mas 1000 anos da ancestral Cultura Marajoara contemplavam aqueles choques fatídicos entre a nascente ecocivilização neotropical e a decadente civilização ocidental. Onde estamos agora, no século XXI? Se não sabemos interpretar e desenvolver esta herança não seremos dignos de conservar a Amazônia: esta é a questão!

Certa visão medíocre dos paraenses em particular e brasileiros em geral, confunde equivocadamente o tempo arqueológico marajoara com juizo de valor entre as mais antigas culturas amazônicas pré-coloniais (Tapajós, Maracá e outras). Na verdade, a Cultura Marajoara não é a melhor nem maior cultura amazônica. Ela é, com atestado científico respeitável, a mais antiga civilização pré-colombiana do Brasil.

Diversos museus estrangeiros e nacionais possuem coleções de cerâmica marajoara que dialogam mal entre si e se esquecem da responsabilidade socioambiental que deveriam ter em relação à Criaturada grande de Dalcídio Jurandir e ao sui generis ecomuseu do padre Giovanni Gallo. Cedo ou tarde o repatriamento dessas coleções no exterior poderá ser reclamada. Mas, o que os museus nacionais fazem com as suas peças nada significa para a inclusão social das comunidades remanescentes da primeira cultura complexa da Amazônia.

Já que Dalcídio e Gallo estão mortos e os cabocos não tem como dizer das suas esperanças, carece que pelo menos um dos menos desletrados faça alguma coisa. É o que estou tentando, pelo menos, nos últimos 15 anos desde o X Encontro em Defesa do Marajó, na cidade de Ponta de Pedras, em 30 de abril de 1995.

Nenhum comentário: