segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A lupa de Humboldt em riba da paisagem marajoara

Os cabocos marajoaras devem ser gratos aos "teutos-marajoaras" Gunter Pressler e Willi Bolle, que devoraram Dalcídio Jurandir a fim de assimilar a paisagem cultural das ilhas filhas da Pororoca. Desta antropofagia sagrada resulta o colírio que nos ajuda a ver a conexão secreta entre "regional" e "universal": "words, words, words" (Shakespeare). JMVP
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A AMAZÔNIA ENTRE O MÍTICO E O CIENTÍFICO:
outubro 24th, 2010 | Author: Luciana

Dalcídio Jurandir à luz de Alexander von Humboldt

Por Willi Bolle (USP)

O objetivo desta comunicação é chegar a uma compreensão aprofundada da cultura cotidiana da Amazônia através da análise e interpretação da obra de um “viajante-insider” da região à luz de algumas idéias-chave de um dos maiores viajantes-pesquisadores de todos os tempos.

Trata-se, respectivamente, do romance Ribanceira (1978), de Dalcídio Jurandir (1909-1979), que concluiu com esse livro o seu ciclo de dez romances sobre a Região Amazônica, e de Alexander von Humboldt (1769-1859), que realizou de 1799 a 1804 uma viagem de pesquisa pela América Latina, inclusive a Amazônia, que ele documentou numa obra científica e literária exemplar.

A proposta de ler a obra de Dalcídio Jurandir à luz de Alexander von Humboldt justifica-se metodologicamente por três motivos importantes:

1. A relação entre o regional e o universal. Se, por um lado, a obra do romancista paraense é bastante conhecida no seu Estado de origem, sobretudo na década atual, já não se pode dizer o mesmo com relação ao Brasil. Efetivamente, Dalcídio Jurandir não faz parte do cânone da literatura brasileira, e muito menos da literatura universal.

Ora, uma vez que o conjunto de sua obra oferece uma representação da cultura cotidiana da Amazônia, com uma abrangência, densidade e precisão que desta forma provavelmente não existem em nenhum outro autor da região, é uma tarefa da crítica desenvolver estratégias para tornar essa obra mais conhecida.

Aqui trata-se de analisá-la com o método característico de Humboldt de tentar compreender os fenômenos locais e regionais por meio de comparações de abrangência internacional e planetária. Mesmo o eurocentrismo que existe em várias de suas comparações de fenômenos culturais – a referência à cultura grega como modelo – não deixa de ter, dialeticamente, uma utilidade prática.

É que o público europeu poderá compreender mais facilmente uma realidade não-européia quando esta lhe é apresentada por meio de uma “universalização” com a qual está familiarizado.

No mais, o interesse “universal” da obra de Dalcídio não pode ser postulado, mas pode se procurar demonstrá-lo por meio de temas e motivos de relevância geral, como os dois seguintes.

2. A relação entre o mítico e o científico. Os nomes com os quais se designa o maior rio do mundo e a sua região – “Amazonas” e “Amazônia” – são o resultado cultural e político de uma universalização européia, ou seja: a projeção de figuras da mitologia grega sobre uma realidade geográfica até então desconhecida, com a qual se deparavam os descobridores espanhóis durante a primeira travessia, realizada em 1541/42, com a expedição de Francisco de Orellana.

Essa mitologização, acompanhada do mito correlato do Eldorado, teve uma função ideológica fundamental para impulsionar os projetos de conquista e colonização. Reflexos disso encontram-se em discursos políticos e econômicos até os dias atuais. Com relação a essa mitologização e ficcionalização da Amazônia, sobretudo também na cartografia, Humboldt realizou um trabalho exemplar de desconstrução, com base em observações científicas.

O seu método de transitar entre o mítico-ficcional e o científico pode-se tornar operacional quando se trata de analisar os ingredientes míticos (as lendas e crenças amazônicas) que Dalcídio incorporou à sua obra. É útil também para investigar quais são os diferenciais cognitivos entre o romance, enquanto obra de ficção, e estudos de Ciências Sociais.

No caso concreto, vamos comparar, à luz de Humboldt, o romance Ribanceira, de Dalcídio, com o estudo do antropólogo Charles Wagley, Uma comunidade amazônica (1953), sobre o mesmo lugar, isto é, a cidade de Gurupá, situada no Baixo Amazonas, numa posição estratégica de acesso à região inteira.

3. A preservação da língua de uma comunidade, como documento mais importante de sua cultura. Em sua abrangente visão comparada das culturas do mundo, o principal ponto de referência de Humboldt, de acordo com a sua formação, é a cultura greco-romana (incluindo vários elementos das culturas orientais), à qual atribui um valor exemplar.

Esse modelo eurocêntrico, que está mais fortemente presente nas etapas iniciais da viagem, é submetido a uma reflexão autocrítica durante o contato com as culturas, coloniais e pré-coloniais, encontradas na América. Assim, a separação bastante esquemática entre os “povos civilizados” das montanhas ou Cordilheiras, com seus monumentos e documentos de escrita, e, por outro lado, as “hordas bárbaras e selvagens” da planície amazônica, pode ser superada por meio de uma idéia-chave de Humboldt, que consiste em considerar como “documento mais importante de toda cultura” a sua língua.

Para demonstrar essa tese, ele relata o caso de uma tribo indígena às margens do rio Orinoco, que acabara de ser extinta. O único ser vivo que ainda fala a língua dessa tribo é um papagaio. É essa narração emblemática que Mário de Andrade retoma no Macunaíma, para narrar “a história” “de nossa gente” e assim “preserv[á-la] do esquecimento”.

Neste ponto, o projeto literário, cultural e político do autor de Ribanceira se aproxima bastante daquele do autor de Macunaíma. A imagem do pássaro de bico grande na capa de Ribanceira, que não é mas sugere a de um papagaio, talvez seja uma paródia da poética do modernista de São Paulo.

Apesar das diferenças, ao mergulhar profundamente nas falas dos habitantes ribeirinhos, com seus usos, costumes e sua mentalidade, Dalcídio Jurandir preservou, como talvez nenhum outro autor da Amazônia, a fala, e com isso a cultura e a história cotidiana de sua gente.

Esclarecidos estes pressupostos, podemos entrar na fase operacional concreta da nossa pesquisa, explorando, numa primeira parte, a relação entre o mítico-ficcional e o científico. Para realçar melhor os elementos “míticos” no romance de Dalcídio – no duplo sentido: incorporação de lendas e crenças da Amazônia e construção de uma obra ficcional –, usaremos, como meio heurístico complementar, além de Humboldt, a comparação com o já referido estudo Uma comunidade amazônica, de Charles Wagley.

Em termos de geografia real, física e humana, o romance Ribanceira tem vários elementos de composição “externos” (como diria Antonio Candido) em comum com o estudo do antropólogo. A referência topográfica comum é a pequena cidade de Gurupá, chamada de “Itá” por Wagley e de “Ribanceira” por Dalcídio.

É uma comunidade típica do Vale do Amazonas. Assim como o antropólogo, também o romancista compõe a sua obra com base em um roteiro para o conhecimento da cidade, recorrendo a informantes locais para se inteirar da posição da cidade relativa ao rio, das ruas, dos lugares e prédios públicos (como o Trapiche, o Fortim, a Intendência, o Mercado, a Igreja, os cemitérios), das residências de autoridades e comerciantes, e das moradias de gente vivendo na pobreza e na miséria.

A época histórica retratada é aproximadamente a mesma: anos 1930 e 1940, ou seja, a terceira e a quarta década depois do colapso da Borracha. Em termos de atividade econômica, prevalece a estagnação, com uma modesta continuação da produção de látex, à qual se acrescenta a extração de madeira. A constelação dos personagens do romance constitui um quadro semi-documentário da sociedade local, com predomínio dos representantes do poder público e de figuras sobrevivendo à margem da economia.

Também no que diz respeito a elementos antropológicos como encontros sociais, costumes, rituais e festas, o romance se aproxima bastante das Ciências Sociais. Em vários pontos, Ribanceira confirma e ilustra as informações da pesquisa de campo realizada por Wagley; por seu lado, o estudo antropológico nos ajuda a compreender melhor certos detalhes como as diferenças entre as classes sociais, as relações de compadrio, a importância e organização da festa de São Benedito, e as crenças, lendas e mitos regionais.

Em suma: os textos do antropólogo e do romancista se complementam, na medida em que Dalcídio Jurandir continua uma tradição da literatura brasileira do século XIX, a de usar “o romance como forma de pesquisa” (Antonio Candido).

Em que consiste, então, a diferença entre o estudo da cultura da Amazônia pelo prisma das Ciências Sociais e, por outro lado, através da literatura de ficção? É a especificidade de conhecimentos proporcionados pelos procedimentos estético-literários postos em obra pelo romancista: elementos de forma, composição e estilo.

Com efeito, em Ribanceira, o escritor não aspira a nenhum conhecimento conceitual sistemático, não persegue à primeira vista nenhum programa teórico, mas opta, em vez disso, por uma forma de composição bastante solta, um fluxo narrativo contínuo de 320 páginas, não interrompido por nenhum tipo de subdivisão.

Trata-se de um mergulho, aparentemente espontâneo, no prazer do concreto, o que resulta na criação de uma “atmosfera”, em que o conhecimento proporcionado por sensações e sentimentos, fluxos de consciência, imagens de desejo, sonhos e fantasias, acaba prevalecendo sobre o conceitual.

A instância organizadora de todos esses elementos bastante voláteis é o narrador, que se mantém próximo do protagonista Alfredo, o jovem de 20 anos que cumpre o papel de Secretário da Intendência e, com isso, de observador participante.

Verba volant, scripta manet. Esta citadíssima locução latina pode nos ajudar a compreender melhor o projeto literário, cultural e político do autor de Ribanceira, para não dizer, do Ciclo inteiro do Extremo Norte. Quando os personagens entram em cena, eles entram sobretudo como personagens-falas.

Este é um traço diferenciador fundamental do romance em comparação com os estudos sociais. Para ilustrar a idéia de personagem-fala podemos recorrer à escrita hieroglífica azteca, da qual várias amostras são apresentadas e comentadas por Alexander von Humboldt em sua obra Vues des Cordillères et Monuments des peuples indigènes de l’Amérique (1813).

Daquela escrita nos interessa aqui específicamente o desenho de uma pequena língua colocada a uma pequena distância da boca dos personagens representados (cf. o tableau XII da referida obra). Esse hieróglifo indica que se trata de seres vivos, pois, segundo os aztecas, viver é falar. É, ao mesmo tempo, a melhor ilustração da tese geral de Humboldt de que “a língua é o documento mais importante de toda cultura”.

Por este caminho, é possível superar, de forma produtiva, a diferença rígida estabelecida por ele entre os povos “civilizados” que inventaram sistemas de escrita (na Ásia, na Europa e nas Cordilheiras da América) e os habitantes “bárbaros” e “selvagens” da planície amazônica, que não chegaram a esse estágio. Uma vez que os materiais lingüísticos estudados pelo viajante alemão dos rios Orinoco e Cassiquiare são bem diferentes daqueles trabalhados pelo romancista do Baixo Amazonas, não se pode fazer aqui uma transferência metodológica stricto sensu, mas a idéia-guia de Humboldt é muito útil num sentido heurístico.

Com efeito, na obra de Dalcídio Jurandir não se trata de documentos de línguas indígenas e, sim, de falas em português da população ribeirinha. É uma cultura miscigenada que integra elementos da tradição oral, indígena e européia, e, além disso, incorpora a essas tradições populares elementos da cultura escrita e da norma culta.

Como exemplo concreto dessa mistura podemos citar estas duas falas da lavadeira Daria-Mora-com-o-Diabo, “gerada de uma índia”, e que se dirige ao Secretário Alfredo, que vem visitá-la na beira do igarapé: “Peixe-boi novilho, meio adivinho eu que o senhor tem um sangue furioso ou por hipótis sou eu?” “Agora que o senhor está aí [...] licença que lhe pergunte: as informações que o senhor teve desta minha fraca pessoa? Leu no edital do Trapiche? Ouviu dum boca quente?” (Ribanceira, p. 262 e 263, grifos meus).

A segunda parte desta exposição será dedicada a estudar os procedimentos estético-literários usados por Dalcídio Jurandir para captar e preservar um acervo significativo das falas que escutou na cidade ribeirinha por ele escolhida e que é representativa das comunidades do Vale Amazônico em geral. O escritor incorporou à sua obra um dictio-narium da cultura amazônica, no sentido de Jakob Grimm: um acervo dos ditos mais expressivos da língua dos caboclos, que são incorporados à obra em forma de “citações” que se gravam na memória.

Para captar a teoria dessa poética, inscrita no próprio romance, selecionaremos um conjunto de observações, espalhadas pelo texto, em que o narrador e seu protagonista falam de sua disposição, dedicação e seus procedimentos em “ouvir” o povo, e em obter, com isso, uma escuta, por dentro, das estruturas sociais e da cultura do cotidiano.

Para dar uma amostra significativa do acervo de falas registradas pelo romancista estabeleceremos também, com base na observação do texto, uma tipologia dos diversos registros de ditos dos personagens. Desde as instruções burocráticas dos administradores e representantes do poder público, até conversas informais com pessoas das diferentes classes sociais; desde a expressão de tensões e conflitos até brincadeiras amorosas e as fofocas onipresentes; e desde as mais diversas crenças locais até estórias apoiadas em antigas lendas indígenas.

De alguma maneira, essas falas refletem também a concepção de história de Dalcídio Jurandir. Em comparação com o antropólogo Charles Wagley, que declarou como seu objetivo querer contribuir para que aquela comunidade amazônica saísse do atraso e do subdesenvolvimento, o romancista não parece preocupado com a dimensão do futuro. Ele concentra as suas energias na observação do presente, no qual o futuro de alguma forma se prenuncia. Uma pergunta suscitada pela leitura do romance de Dalcídio Jurandir, como também pelas observações de Humboldt sobre os abusos da administração colonial, é esta: Será que o aparato administrativo do Estado, que poderia se valer também do auxílio da ciência, traz efetivamente a modernização para a Amazônia e, com isso, vai substituindo aquele universo mítico de lendas e crenças? Não é que nos faz acreditar o dictio-narium das falas colhidas pelo autor de Ribanceira.

O jargão burocrático e as praxes administrativas ali descritas não representam nenhuma alternativa moderna em relação ao atraso dos ribeirinhos. Pelo contrário, o retrato dalcidiano de personagens como o Sede de Justiça, o Juíz, o Capitão e o porteiro tem algo que faz lembrar os personagens e a atmosfera das narrativas de Kafka.

Em vez de trazerem para aquela comunidade as luzes da razão, do progresso e da ciência, os representantes do Estado moderno espalham nela uma atmosfera profundamente mítica e mistificadora, característica de um poder autosuficiente e arbitrário, que não oferece aos habitantes da ribanceira nenhuma alternativa convincente para sairem do universo das crenças e mitificações com os quais estão acostumados.
ver: http://www.amazonias.blog.br/?p=191

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